De Sanctis: o lugar da verdade está vago
O Conversa Afiada reproduz discurso que o Desembargador Fausto Martion De Sanctis pronunciou na noite desta segunda feira, ao receber na Câmara dos vereadores a Medalha Anchieta e o Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, por iniciativa do vereador Paulo Frange.
DISCURSO
CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO
MEDALHA ANCHIETA E DIPLOMA DE GRATIDÃO
São Paulo, 05.12.2011,
Fausto Martin De Sanctis
São Paulo,
Tuas portas que se abrem e fecham,
A diversidade vertiginosa,
A gente maravilhosamente plural,
O ímpeto dos teus e um enredo sensorial
Sempre me fizeram sonhar e me ensinaram uma certa poesia,
Que consegue protagonizar a harmonia do caos de teus números extremados, mas grandiosos,
Acolhestes filhos, biológicos ou adotivos.
Sou mais um no número absurdo dos que gerastes e agregastes com generosidade, desta que é uma verdadeira mãe. Reconheço-me bem.
Teus integrantes, com instinto de chegada e partida no sangue, teimam em romper os teus extraordinários obstáculos, concretizando uma rebeldia pacífica, mas guerreira.
Acredito carregar comigo o sacudir dos seres, os climas, os cheiros, os sons, as luzes, a escuridão, o abandono e a abundância, mas também a incrível capacidade de inovação e superação. A tua herança.
São Paulo, estás em mim, nas minhas atitudes, no desejo de transformar, de criar, de fazer acontecer, um olhar sob prisma próprio, que deseja se opor à mesmice, mas sem violar as regras do viver harmonicamente com o diferente.
Nasci e cresci inspirado nos teus instintos, na azáfama desordenada, mas ordeira de um povo que valoriza a vida, trabalhando e também aprimorando o seu intelecto.
Uma cidade que consegue preservar suas tribos. O encontro da índia Portira e de João Ramalho, de cujos nove filhos surgiram a matriz de nosso povo, não se deu em vão. O tupi-guarani foi a língua oficial de São Paulo até o século XIX, sendo esta a última grande cidade a deixar de adotá-la. Seus resquícios restam em nós. Identidade e diversidade culturais de uma cidade que, por vezes, aparta-se, mas não disfarça sua presença e história. Moema, Ibirapuera, Mooca, Itaquera, Morumbi, Mandaqui, Tatuapé...
Incorporamos seus hábitos e até comportamentos. Estamos presentes no Capão Redondo, no Jardim Elba, em Paraisópolis, no Grajaú, no Jardim das Palmas, na Sônia Maria, no Real Parque e no Jardim Irene (Pankararu). Também no Pico do Jaraguá (Jaraguá Ytu), em Parelheiros (Guaranis), em Guaianases e em Itaquera (Guaianás).
Sou apenas mais um. Este filho de tua terra podia ser um índio. Entretanto, podia ser um rurícola de um bairro distante. Podia ser da periferia. Um emo, um punk, um gótico, um executivo, um nobre, um humilde ou um pobre...
Integro a Justiça, porém ela é algo inerente a nós humanos. Implica um olhar sobre o próximo, uma necessária relação entre as pessoas, de alteridade, não importando o belo imóvel em que costumeiramente acaba se instalando e, por vezes, se notabilizando, bem ainda adornos, mármores, suas pompas e circunstâncias. Sua missão reparadora própria tem no outro, não um seu objeto, mas um sujeito, um irmão.
Nascemos, todos, juízes. Desejamos pontuar, simplificar, reparar, pacificar, conciliar. É certo que existe uma literalidade da lei a ser resignadamente cumprida. Mas, mesmo dentro dela, garante-se um espaço livre, de contestação, de crítica e de defesa da igualdade.
Atribuem-me reputação impecável, o que me faz tentar se guiar cada vez mais como sempre sonhamos agir desde crianças, mas com a consciência de que, tanto quanto elas, nós, adultos, necessitamos de limites, de padrões estabelecidos num universo de corresponsabilidade. Pelo menos, sempre assim procurei me conduzir.
Considero minha família os embates, as inquietudes, a busca por soluções, os dramas, as críticas e, especialmente, a equidade.
Sinto-me confortável nessa posição. Tentei seguir a cartilha, contudo, inegavelmente, persegui a diferença mesmo diante de procedimentos que, de tradicionais, passaram por uma imperiosa renovação.
Tentando romper com a postura congelada e estereotipada de magistrado, provi o serviço público com lágrimas e sorrisos, não propriamente visíveis, para que fosse possível usar os óculos devidos, corrigindo o foco para ir ao detalhe. Preservar a minoria. Fazer valer a humildade.
Como disse Thomas Jefferson “não sou um advogado frequente de mudanças em leis e Constituições, mas, leis e instituições devem estar lado a lado com o progresso da mentalidade humana”.
Vesti, é certo, a toga, psicologicamente também. Algo que sempre carreguei instintivamente.
O poder, uma vez incorporado, pode salvar ou destruir. A Justiça quando destrói, nos exatos termos que a morte, significa término. Mesmo para os espiritualistas que acreditam no alento da reencarnação, a morte está associada ao sofrimento, ao rompimento. Morre-se para sobreviver.
Quando a Justiça não salva, tal qual a morte, significa abandono e solidão, provocando nas pessoas rejeição, medo e reflexão. Descrédito na crença no direito e/ou na própria Justiça. Ao se afastar dela, o homem, como dizia Cícero, torna-se o pior de todos os animais. Somente pela verdade e pela Justiça, creia-se, chega-se a Deus.
Hoje, aqui, sou homenageado por um trabalho, uma postura, um jeito de ser e de se conduzir. Que a todos, ou melhor, acredito que a uma imensa maioria, é próprio. Por me pautar por escolhas, não escolhas fáceis, porém decisões e ações voltadas para não prejudicar e, sim, valorizar a vida e tudo o que ela produz. De minha parte, não houve silêncio, tampouco omissão. Não se deve fazer nada por si mesmo, mas para elevação Daquele que nunca nos deixa sozinho. Daquele que constitui o esplendor humanizado. Trata-se de uma opção que possui um peso: o ônus de substituir vontades próprias. Aquela relação que obriga a que o próximo seja considerado, sentido, ouvido, prestigiado.
Tal comprometimento, em prol da vida, da sobrevivência, não pode ser protocolar ou cosmético. Não se cuida de algo que possamos passar em nossos rostos como se fora uma mágica loção que nos torne éticos ou probos. Respeito requer ações de respeito.
Um caminhar com a envergadura necessária, de forma que, parafraseando Aristóteles em Ética à Nicômaco, os seres humanos devem nortear suas vidas, como também suas cidades. É o grande e árduo exercício para o encontro da felicidade, ou seja, estar em sintonia com os preceitos permanentes da vida. Uma excelência moral, da alma (irracional), mas também intelectual (do racional), para se chegar ao mais elevado e perfeito equilíbrio.
Viver exige reflexões e atitudes que criam hábitos, formam o caráter e determinam o destino. Não se pode encarar os fatos da vida com leviandade, sem crítica e autocrítica, sem o cotejo de opiniões, apenas pelo rompante de posicionar-se ou por uma vaidade de falar, decidindo-se ironicamente para expressar uma originalidade que nada tem de espontânea.
É necessário, internamente, dar o tal “murro na mesa”. Um basta naquela tolerância em sentido negativo, que não reage à opressão, ao escárnio e ao descaso pela vida alheia. Contudo, não podemos, pela força, concretizar nossa indignação porquanto, possivelmente, não emergiriam, de fato, grandes valores ou um mundo construtivo.
Chega de palpites, alfinetadas, leviandades e preconceitos. Mentiras que, com sabedoria, lamentavelmente têm sido dissimuladas, enquanto a verdade não está merecendo o seu lugar de destaque. Ele está vago!
Edificar esta obra não exige, no entanto, modificar obra alheia virtuosa, lesando-a. Essa obra de arte, que constitui nossas vidas, converge da ou para a criação e transposição, com respeito absoluto pelos seres vivos, humanos ou não, com suas limitações e potencialidades, permitindo, sim, uma sociedade plural, mas harmônica, sempre.
Fácil bradar que aspiramos a bons conceitos e boas atitudes. Entretanto, quando nos restringimos a isso, tornamo-nos uma utilidade doméstica, um aspirador, algo imaterial e inumano, que nada retribui.
Devemos atingir a tal reparação para que o fenômeno da imitação, que é inerente à vida social, tenha algum sentido positivo. O presente é obra iniciada no passado e configura precisamente o passado do que se realizará. Os seres humanos copiam, é certo, uns aos outros, mesmo quando não pretendem fazê-lo. Imitamos os mais próximos ou então nossos pais, nossos professores, nossos vizinhos, nossos amigos, nossos políticos, nossas autoridades, nossos juízes. Nossos juízos. Trazemos traços comuns de nossos ancestrais. Somos modelos novos de uma mesma raiz. Talvez até cópias fiéis antigas e isso faz com que influenciemos as pessoas na proporção direta ao grau de intimidade que com elas mantemos. Isto independe de classe social, mas sabemos e devemos estar cientes de que somos reproduzidos principalmente pelas camadas sociais menos favorecidas que tentam imitar comportamentos típicos de estratos que consideram “mais elevados”.
Multiplicação de condutas e valores numa civilização, ao contrário da antiga, muito rica e pouco coerente. De nada adianta darmos educação refinada às crianças se elas continuam a viver em ambiente corrompido. Não é tarefa simples o exercício da cultura da licitude, mas é algo que nos compele, nos obriga, nos transforma. É exercício permanente se considerarmos que nascemos avessos a estrita obediência às regras sociais.
Esse exercício serve para catalisar e nuclear demandas que se encontram dispersas, mediante progressivo entendimento do que é senso comum. Os seres egocêntricos à demasia sofrem, em verdade, de solidão e compensam suas terríveis ações com prodigalidade e, às vezes, até, com “generosidade”.
Peço permissão para neste momento enaltecer o vereador Paulo Frange que, com projetos importantes, tem norteado sua vereança, fazendo verdadeira medicina jurídica ao cuidar da população paulistana.
Sinto-me lisonjeado de receber tamanha premiação da Câmara Municipal desta cidade por iniciativa do vereador. Pelas suas mãos surgiram ideias com elevada preocupação social. É evidente o seu trânsito entre diversos e variados seguimentos e a preocupação com o bem-estar coletivo. Saúde, segurança, meio ambiente, cultura, lazer, trânsito, educação, administração pública, assistência social, idosos, foram objetos de muitos desses projetos, conferindo verdadeiro e importante pragmatismo legislativo.
Cito, a título exemplificativo, os projetos de lei que prevêem isenção do pagamento de IPTU às pessoas portadoras de deficiência que possuem um único imóvel; que dispõem sobre o uso de capacete, touca, capuz, gorro, máscara ou qualquer outro tipo de equipamento ou artifício que impossibilite ou dificulte a identificação e o reconhecimento do usuário quando do ingresso ou permanência no interior dos estabelecimentos públicos; que instituem o Programa de Atendimento e Internação Domiciliar no Município de São Paulo – PROHDOM; de “obesidade zero”, bem ainda que versam sobre a concessão de incentivos à implantação de hotéis, hospitais, escolas, cinemas e teatros nas periferias.
Como São Paulo, desejo romper a monotonia e o comodismo. Cobro e também celebro a vida. Em mim necessariamente estão as marcas desta grande tribo urbana.
Agradeço a Deus e a São Paulo por tudo. Meus ancestrais acolhidos neste berço, meu pai Fausto, sempre presente em mim, minha mãe Victória, minhas irmãs Victória, Valéria e Vivian, meus filhos Thomaz e Theodoro, também presentes em mim. Meus parentes e amigos. Os funcionários da Justiça. As Vivianes, os Hélios, os Torus, os Andréas, as Noêmias, os Josés, as Marias, os Ricardos, os Norbertos, Robertos, os Antônios, os Márcios, os Santos, os Silvas.
Gostaria de homenagear pessoa por pessoa, mas não poderia deixar de agradecer aos condutores e voluntários de entidades beneficentes que exercitam, com alegria, a solidariedade. Saibam: tudo o que eu realizei também o está sendo efetivado por muitos e desconhecidos juízes, com certeza, com melhor sapiência. Acreditamos e, por isso, continuamos sendo. E fazemos com paixão e idealismo. Quero agradecer publicamente a todos pelo que fazem e fizeram por mim e me penitenciar por eventuais lapsos cometidos. Por fim, não poderia deixar de render homenagens às vítimas, às testemunhas, aos investigados e aos réus que certamente tiveram seus dramas expostos e suas inquietudes também. Jamais os tratei com desdém, deslealdade ou indignidade. Foram e são fontes de aprendizado e motivação para respostas que contribuam para a construção de um futuro promissor, não apenas para si próprios, mas, inclusive, para nós mesmos. O conhecimento adquirido, quando assimilado pelo espírito, é transformador.
Não sei, parafraseando o Ministro Ayres Britto, para aonde seguirei, que metas exatamente cumprir, pouco importa. Só sei que o que me sustenta é uma teimosia em perseguir e pautar-me por princípios, dentre eles um maior e, escorado nele, desejo sempre estar sereno, seguro e fiel.
É isto que poderia dizer a meu respeito, juiz e ser humano. Meus propósitos. Estar em sujeição ao juramento que fiz de vida. Ao compromisso. Com doses excessivas de paciência, nunca nada conseguiu fazer-me desistir já que servi com amor. E isto é um caminho de dupla via. Ou melhor, é via única. Servir é amar. Só isto.
Muito obrigado Senhor. Muito obrigado São Paulo. Muito obrigado autoridades presentes, advogados, promotores, procuradores, juízes, jornalistas, políticos, professores, médicos etc. Obrigado a este povo intuitivo e positivamente rebelde, que tem a ousadia e a coragem como seus valores mais evidentes porque traduzem inquietude latente e irremediavelmente não resignada.
Recebo o Diploma de Gratidão desta minha querida cidade de São Paulo e a Medalha Anchieta, com especial orgulho porque emana de uma terra, a de Piratininga, nossa cidade em tupi-guarani, que, com luta, conseguiu protagonizar feitos únicos que somente aqui poderiam ter o seu lugar.
Em tempo: antes do discurso de De Sanctis, foi exibido um vídeo em que o ministro Gilson Dipp elogia a competência e a dedicação do juiz De Sanctis. Como se sabe, o ministro Dipp tentou evitar o sepultamento da Operação Satiagraha no STJ. Prevaleceu a decisão do relator, Dr. Macabu, cujo filho é empregado de Sérgio Bermudes, um dos notáveis e poderosos advogados do banqueiro condenado Daniel Dantas. A relação íntima e pública de Bermudes com Gilmar Dantas (*) é a origem da tentativa do Dr. Alberto Piovesan de destituir Gilmar Dantas. Clique aqui para ver que a iniciativa de Piovesan, na verdade, equivale a um B.O - PHA
(*) Clique aqui para ver como um eminente colonista do Globo se referiu a Ele. E aqui para ver como outra eminente colonista da GloboNews e da CBN se refere a Ele.