Valmir e os jovens negros amarrados
O Conversa Afiada reproduz artigo do deputado federal Valmir Assunção (PT-BA):
“O negro segura a cabeça com a mão e chora”
Nego Tenga ¹
Por Valmir Assunção*
Tem uma máxima que repetimos: a vida não para. De fato, o tempo corre em uma única direção há como fazê-lo estacionar e, portanto, parar a vida. Se é verdade que não tem como interromper o curso cronológico da vida, também o é dizer que as vezes ela nos força a parar, não pausando o tempo, mas nos fazendo pensar se a maneira como a vida está se passando é realmente a melhor.
Esses dias a vida me parou e me perguntou se eu estava satisfeito. Me perguntou, não mostrando o que de bom já vivenciei, mas estampando em minha face imagens chocantes de dois jovens negros espancados e acorrentados, e uma ainda pior de uma execução em público de outro jovem, de outro negro.
A minha vida política, a minha militância, sempre foi atrelada umbilicalmente ao combate a esses tipos de violências impulsionadas pelo racismo, e embora eu lute e saiba que coisas semelhantes a essas acontecem centenas de vezes todos os dias, essa fez a minha vida parar.
Se tem uma características que nós negros e negras carregamos é a capacidade de sentir na pele o sofrimento a que qualquer um de nós seja submetido. O agravante que me fez entrar em uma profunda reflexão acerca da sociedade foi que não houve uma unanimidade de condenação de tais atitudes, ao contrário, muita gente defendeu a ação destes criminosos, que espancaram e amarraram uma pessoa, inclusive uma âncora de um telejornal em rede nacional.
O grande problema é que depois de mais de um século da abolição da escravidão, aos negros e negras ainda são destinados, espaços, papéis e funções sociais. Não são eles que constroem sua identidade, seu espaço, mas uma elite que estabelece estes limites. Um negro acorrentado no pescoço, ou executado em via pública e movimentada, infelizmente, está dentro do papel social que foi atribuído a ele.
Saímos das Senzalas e nos jogaram nos “Pedrinhas” da vida, e em vários outros presídios de um sistema carcerário absolutamente cruel desumano.
Alguns anos atrás um tanto de estudantes de direito, brancos, bem vestidos, entrou em um bar, comeu, bebeu e saiu sem pagar, ou seja, roubou o bar. Se um estudante desse fosse espancado e amarrado num poste por um grupo de “vingadores” negros não haveria divisão de opinião, ela seria uma só, qual seja, prendam esses criminosos que espancaram uma pessoa e amarraram.
Isso se justifica pelo fato de nunca existiram brancos amarrados pelo pescoço pelo que quer que tenham feito, quem é preso, açoitado, mutilado e assassinado ao longo da história sempre são os negros. O espaço social, o papel que a sociedade deu e parte dela ainda dá aos negros é o de estar nu, espancado e amarrado pelo pescoço em poste no meio da rua. Foi assim com Zumbi, foi assim com Maria Felipa, foi assim com João de Deus, foi assim com Mandela, foi assim com Malcom X e tantos outros.
Em episódio que também nos causa revolta, uma professora de ensino superior fotografou uma pessoa no aeroporto e escreveu a singela legenda: “Rodoviária ou Aeroporto?”. A atitude da professora tem o mesmo princípio que levou as barbaridades acima descritas, quem pode ocupar determinados espaços. Aeroporto sempre foi símbolo de uma elite preconceituosa, que não admite dividir seu espaço de privilégio com aqueles e aquelas que sempre foram seus “empregados”.
Me preocupa pois, nos últimos 12 anos dos nossos governos petistas, elevamos a condição de vida de milhões de pessoas. As nossas políticas deram a uma parte da sociedade que estava excluída o direito de consumir, de adquirir bens e serviços que até então lhes eram negados. E fizemos o correto. Mas precisamos reconhecer que falhamos na disputa de valores em nosso país.
Quando o “bandido bom é bandido morto” compete em pé de igualdade com o “precisamos reduzir as desigualdades, igualar as condições e proporcionar vida de qualidade para todos” é sinal de que a disputa ideológica de fundo está se acirrando. Não tenho dúvidas de que a presidenta Dilma será reeleita, mas também não tenho dúvidas de que assim será menos pelos valores de fraternidade, solidariedade que defendemos do que pelo fato de as pessoas terem economicamente melhorado de vida.
A nossa tarefa é casar a melhoria de vida das pessoas, necessária e ainda a ser ampliada, com uma disputa real ideológica da nossa sociedade. Demos condições para que mais jovens tivessem acesso à universidade, aos meios de comunicação, mas não mexemos nas grades curriculares das universidades, na linha pedagógica das escolas, muito menos democratizamos os meios de comunicação.
Sendo assim, as pessoas hoje têm acesso rápido à informação, as pessoas hoje conseguem entrar na universidade, o problema é que as informações que lhes são dadas pelos grandes meios de comunicação, a formação que lhes é dada na universidade, não conduzem para uma emancipação e solidariedade, ao contrário são meios potentes de disseminação do conservadorismo. Aqueles jovens que antes não faziam parte do raio de atuação desses meios, hoje fazem.
Precisamos mudar este cenário, evitar que mais pessoas passem por humilhações e violências por conta dessa lógica social perversa que existe no mundo e no Brasil. Posso dizer que se é verdade que “o negro segura a cabeça com a mão e chora”, toda vez que um de sua raça sofre uma violência, sobretudo que nos remeta ao triste e sofrido tempo da escravidão, é verdade também que o sangue da resistência, da luta e da inconformidade que corre em nossas veias faz nosso coração pulsar cada vez mais forte para lutarmos cada vez mais.
*Valmir Assunção, negro, deputado federal pelo PT-BA
¹O título do artigo remete a um verso da música de Nego Tenga
Clique aqui para ler "“Black blocs” ruralistas alvejam o Planalto"
E aqui para "Venício e o cinismo na tevê"