A fome uniu Betinho, Josué e Waldir
Emiliano José: isso aí não dura muito!
publicado
18/12/2016
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Betinho, Josué de Castro e Waldir Pires
O Conversa Afiada reproduz inspirado artigo do jornalista Emiliano José:
Betinho, Josué de Castro e Lula: o desafio da fome
Assistia ao filme sobre Betinho, sua notável ação contra a fome, a organização do impressionante movimento Ação da Cidadania, Contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Herbert José de Souza, o irmão de Henfil, se já era personagem da história, tornou-se ainda maior quando fez questão de mobilizar a sociedade brasileira contra o terrível flagelo da fome, a atingir quaisquer consciências com um mínimo de humanidade.
Insistia não ser um problema afeto apenas ao Estado.
Era preciso mudar a consciência da sociedade, trazê-la à cena, provocar a solidariedade, e nos anos em que esteve à frente daquele movimento conseguiu despertar vastos setores sociais face ao problema.
Não era suficiente, e talvez soubesse disso.
Sem uma ação do Estado, sem políticas destinadas a superar o desafio, as coisas não alcançariam o objetivo.
Morreu em 1997.
Deixou a herança de uma vida dedicada aos mais pobres, pretendendo elevá-los à cidadania, dar-lhes consciência de serem os autores de nossa história.
Enquanto assistia ao Três Irmãos de Sangue – Chico Mário, Henfil e o próprio Betinho – à mente me veio o grande Josué de Castro.
Não se pode, não se deve discutir a fome no Brasil sem referir-se a ele. Talvez, de passagem, caiba lembrar que neste fatídico ano de 2016 já lá se vão 70 anos da primeira edição de “Geografia da Fome”, surgido à luz em 1946, e 65 anos de “Geopolítica da Fome”, editado em 1951, ambos traduzidos em boa parte do mundo, mais de 20 países. Não foi um intelectual qualquer. Não pela densidade apenas, mas pelo conhecimento colocado à disposição dos mais pobres, das classes exploradas. Tinha lado no mundo, sempre à esquerda.
Sua obsessão era a fome, nunca vista como uma fatalidade, mas como uma produção humana, como resultado da organização capitalista, que pressupõe a exploração e a fome como parte da sustentação do sistema.
Sua preocupação com a fome começa cedo. Em 1932, apresenta monografia para livre-docência em Fisiologia intitulada “O problema da alimentação no Brasil: seu estudo fisiológico”. Em 1936, lança “Alimentação e Raça”. Em 1937, “A alimentação brasileira à luz da geografia humana”. Em 1965, “Sete Palmos de Terra e um Caixão”. Isso para lembrar apenas estudos mais diretamente vinculados à problemática da fome, e ele não se reduziu a isso.
Foi deputado federal por duas vezes, em 1954 e 1958.
Após o segundo mandato, não quis mais a vida parlamentar. Goulart o nomeou embaixador brasileiro junto à sede europeia da ONU, em Genebra. Além da fome, nessa missão sua ênfase era o desarmamento. Tinha paixão por esse trabalho.
Até que a ditadura matou o seu sonho.
Cassou seus direitos políticos por dez anos já na primeira lista e o destituiu da representação diplomática.
Fui me aproximar outra vez de Josué de Castro conversando com Waldir Pires, sobre quem escrevo uma biografia. Havia me entusiasmado com ele na juventude, por óbvio. Depois, pecado grave, me afastei por largo tempo, e agora Waldir o recuperou, sobretudo lembrando a convivência com ele em Paris, durante o exílio dos dois.
Em Paris, Castro foi nomeado professor da Universidade de Paris – Vincennes, onde permaneceu até o fim da vida, respeitadíssimo.
A ditadura é que não o respeitava, e por razões políticas. Josué de Castro, obviamente caminhava na contramão do pensamento dos que chegaram ao poder em 1964. Estes, estavam preocupados de modo especial com os interesses do andar de cima, não com as necessidades do andar de baixo, muitos menos com a fome. Tratava-se, para os novos ocupantes do poder, de satisfazer o apetite das grandes multinacionais e da burguesia local, sempre subordinada ao capital internacional.
Waldir sempre foi um homem movido a sonhos.
Nunca deixou o exílio abatê-lo, e nem deixou de lado a perspectiva de voltar ao Brasil.
A experiência com os exilados espanhóis no Uruguai o impressionou muito. Negativamente.
Foram muito solidários à chegada, ainda em 1964, dele, de Goulart, de Almino Afonso, de Darcy Ribeiro, de tantos outros.
Mas, eram de um amargor, de uma desesperança, de uma falta de perspectiva que impactaram Waldir.
Talvez o longo período afastado de Espanha, a presença de Franco no poder por tantos anos depois da sangrenta guerra civil, a dura derrota dos comunistas e de toda a esquerda, tenham tornado aqueles homens e mulheres tão pessimistas, tão amargos, tão incapazes de sonhar, tão de mal com a vida.
O exílio os tornara pessoas sem esperança.
Não, Waldir não queria aquele destino para ele e seus filhos. Desde aquele contato, pôs na cabeça o plano de voltar ao Brasil logo que pudesse, ou mesmo voltar em condições desfavoráveis. Voltou em 1970, em condições terríveis, Médici como ditador, logo depois do AI-5, mas voltou. Não queria o destino dos exilados espanhóis, não queria perder a esperança, nem perder o vínculo com sua pátria, muito menos deixar os filhos serem absorvidos pela cultura de outro país, e quando voltou isso estava prestes a ocorrer.
Falo tudo isso para voltar a Josué de Castro.
Não deixou de passar o conhecimento a seus alunos.
Não deixou de entusiasmar plateias sedentas de todo o acervo intelectual dele, especialmente de sua compreensão sobre como enfrentar o desafio da fome no mundo.
Mas, havia perdido a esperança, o brilho no olhar.
Não alimentava mais expectativas, especialmente a de voltar para o Brasil.
Waldir tentava animá-lo:
-Nós todos vamos voltar. Mais hoje, mais amanhã, a ditadura cai. Isso é um crime contra a história do nosso País, contra a civilização humana. Nós vamos voltar.
-Está bem, Waldir. Mas eu não vou ver isso.
As palavras saíam embebidas numa tristeza infinita.
O cenário desenhado à frente, na avaliação dele, não prometia democracia sequer a médio prazo.
E tinha razão.
Waldir chega a dizer:
-A depressão o alcançou.
O impacto dos fatos históricos negativos, a ditadura e seus horrores, o fim das liberdades no Brasil, a falta de quaisquer expectativas do desenvolvimento de políticas contra a fome foi pesando em suas costas de forma terrível.
Waldir intervia com seu otimismo:
-O País precisa enormemente de você!
Castro insistia na diferença de idade.
Nascera em 1908, já ultrapassara os 60 anos.
Waldir nascera em 1926, pouco mais de 40 anos.
O desalento tomara conta dele:
-Eu não esperarei esse tempo. Não terei a possibilidade de rever o meu país independente – um raciocínio presente no mais profundo de sua alma, repetido frequentemente.
Celso Furtado, parceiro dele e de Waldir no exílio, também tentava reanimá-lo.
Em vão.
Foi tomado por um pessimismo visceral.
Só mandava a tristeza embora quando proferia suas palestras ou quando em suas aulas. Breves lampejos.
O fato é que a saudade de seu País ia matando-o aos poucos:
-Não se morre só de enfarte, ou de glomero-nefrite crônica. Morre-se também de saudade – disse ele um dia.
Foi assim, de saudade, que se foi, em setembro de 1974.
Só então voltou ao Rio de Janeiro, enterrado no cemitério São João Batista.
Pensei nos dois, em Betinho e Josué de Castro.
E no quanto gostariam ter vivido a experiência do governo Lula, a clareza, a lucidez com que o presidente-operário, e só poderia ser ele, enfrentou o problema da fome.
Com uma política pública que retirou da miséria, do pesadelo da fome, mais de 36 milhões de pessoas, exatamente aqueles que até ali estavam distantes da cidadania, os homens-caranguejo, os homens do lixo, os moradores de rua, os do trabalho escravo no campo, os desempregados, os sem eira nem beira.
Estivessem vivos hoje, Betinho e Josué de Castro, certamente estariam nas ruas para derrotar o governo golpista que subtraiu a vontade de 54 milhões de brasileiros que elegeram a presidenta Dilma.
O golpe representa uma tentativa de volta ao passado, uma avassaladora retirada de direitos tão duramente conquistados, a nos fazer retroceder décadas e a causar sofrimentos inimagináveis para o povo brasileiro, a trazer de volta o espectro da fome, e isso certamente não vai ser aceito pelas trabalhadoras e trabalhadores.
Assistia ao filme sobre Betinho, sua notável ação contra a fome, a organização do impressionante movimento Ação da Cidadania, Contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Herbert José de Souza, o irmão de Henfil, se já era personagem da história, tornou-se ainda maior quando fez questão de mobilizar a sociedade brasileira contra o terrível flagelo da fome, a atingir quaisquer consciências com um mínimo de humanidade.
Insistia não ser um problema afeto apenas ao Estado.
Era preciso mudar a consciência da sociedade, trazê-la à cena, provocar a solidariedade, e nos anos em que esteve à frente daquele movimento conseguiu despertar vastos setores sociais face ao problema.
Não era suficiente, e talvez soubesse disso.
Sem uma ação do Estado, sem políticas destinadas a superar o desafio, as coisas não alcançariam o objetivo.
Morreu em 1997.
Deixou a herança de uma vida dedicada aos mais pobres, pretendendo elevá-los à cidadania, dar-lhes consciência de serem os autores de nossa história.
Enquanto assistia ao Três Irmãos de Sangue – Chico Mário, Henfil e o próprio Betinho – à mente me veio o grande Josué de Castro.
Não se pode, não se deve discutir a fome no Brasil sem referir-se a ele. Talvez, de passagem, caiba lembrar que neste fatídico ano de 2016 já lá se vão 70 anos da primeira edição de “Geografia da Fome”, surgido à luz em 1946, e 65 anos de “Geopolítica da Fome”, editado em 1951, ambos traduzidos em boa parte do mundo, mais de 20 países. Não foi um intelectual qualquer. Não pela densidade apenas, mas pelo conhecimento colocado à disposição dos mais pobres, das classes exploradas. Tinha lado no mundo, sempre à esquerda.
Sua obsessão era a fome, nunca vista como uma fatalidade, mas como uma produção humana, como resultado da organização capitalista, que pressupõe a exploração e a fome como parte da sustentação do sistema.
Sua preocupação com a fome começa cedo. Em 1932, apresenta monografia para livre-docência em Fisiologia intitulada “O problema da alimentação no Brasil: seu estudo fisiológico”. Em 1936, lança “Alimentação e Raça”. Em 1937, “A alimentação brasileira à luz da geografia humana”. Em 1965, “Sete Palmos de Terra e um Caixão”. Isso para lembrar apenas estudos mais diretamente vinculados à problemática da fome, e ele não se reduziu a isso.
Foi deputado federal por duas vezes, em 1954 e 1958.
Após o segundo mandato, não quis mais a vida parlamentar. Goulart o nomeou embaixador brasileiro junto à sede europeia da ONU, em Genebra. Além da fome, nessa missão sua ênfase era o desarmamento. Tinha paixão por esse trabalho.
Até que a ditadura matou o seu sonho.
Cassou seus direitos políticos por dez anos já na primeira lista e o destituiu da representação diplomática.
Fui me aproximar outra vez de Josué de Castro conversando com Waldir Pires, sobre quem escrevo uma biografia. Havia me entusiasmado com ele na juventude, por óbvio. Depois, pecado grave, me afastei por largo tempo, e agora Waldir o recuperou, sobretudo lembrando a convivência com ele em Paris, durante o exílio dos dois.
Em Paris, Castro foi nomeado professor da Universidade de Paris – Vincennes, onde permaneceu até o fim da vida, respeitadíssimo.
A ditadura é que não o respeitava, e por razões políticas. Josué de Castro, obviamente caminhava na contramão do pensamento dos que chegaram ao poder em 1964. Estes, estavam preocupados de modo especial com os interesses do andar de cima, não com as necessidades do andar de baixo, muitos menos com a fome. Tratava-se, para os novos ocupantes do poder, de satisfazer o apetite das grandes multinacionais e da burguesia local, sempre subordinada ao capital internacional.
Waldir sempre foi um homem movido a sonhos.
Nunca deixou o exílio abatê-lo, e nem deixou de lado a perspectiva de voltar ao Brasil.
A experiência com os exilados espanhóis no Uruguai o impressionou muito. Negativamente.
Foram muito solidários à chegada, ainda em 1964, dele, de Goulart, de Almino Afonso, de Darcy Ribeiro, de tantos outros.
Mas, eram de um amargor, de uma desesperança, de uma falta de perspectiva que impactaram Waldir.
Talvez o longo período afastado de Espanha, a presença de Franco no poder por tantos anos depois da sangrenta guerra civil, a dura derrota dos comunistas e de toda a esquerda, tenham tornado aqueles homens e mulheres tão pessimistas, tão amargos, tão incapazes de sonhar, tão de mal com a vida.
O exílio os tornara pessoas sem esperança.
Não, Waldir não queria aquele destino para ele e seus filhos. Desde aquele contato, pôs na cabeça o plano de voltar ao Brasil logo que pudesse, ou mesmo voltar em condições desfavoráveis. Voltou em 1970, em condições terríveis, Médici como ditador, logo depois do AI-5, mas voltou. Não queria o destino dos exilados espanhóis, não queria perder a esperança, nem perder o vínculo com sua pátria, muito menos deixar os filhos serem absorvidos pela cultura de outro país, e quando voltou isso estava prestes a ocorrer.
Falo tudo isso para voltar a Josué de Castro.
Não deixou de passar o conhecimento a seus alunos.
Não deixou de entusiasmar plateias sedentas de todo o acervo intelectual dele, especialmente de sua compreensão sobre como enfrentar o desafio da fome no mundo.
Mas, havia perdido a esperança, o brilho no olhar.
Não alimentava mais expectativas, especialmente a de voltar para o Brasil.
Waldir tentava animá-lo:
-Nós todos vamos voltar. Mais hoje, mais amanhã, a ditadura cai. Isso é um crime contra a história do nosso País, contra a civilização humana. Nós vamos voltar.
-Está bem, Waldir. Mas eu não vou ver isso.
As palavras saíam embebidas numa tristeza infinita.
O cenário desenhado à frente, na avaliação dele, não prometia democracia sequer a médio prazo.
E tinha razão.
Waldir chega a dizer:
-A depressão o alcançou.
O impacto dos fatos históricos negativos, a ditadura e seus horrores, o fim das liberdades no Brasil, a falta de quaisquer expectativas do desenvolvimento de políticas contra a fome foi pesando em suas costas de forma terrível.
Waldir intervia com seu otimismo:
-O País precisa enormemente de você!
Castro insistia na diferença de idade.
Nascera em 1908, já ultrapassara os 60 anos.
Waldir nascera em 1926, pouco mais de 40 anos.
O desalento tomara conta dele:
-Eu não esperarei esse tempo. Não terei a possibilidade de rever o meu país independente – um raciocínio presente no mais profundo de sua alma, repetido frequentemente.
Celso Furtado, parceiro dele e de Waldir no exílio, também tentava reanimá-lo.
Em vão.
Foi tomado por um pessimismo visceral.
Só mandava a tristeza embora quando proferia suas palestras ou quando em suas aulas. Breves lampejos.
O fato é que a saudade de seu País ia matando-o aos poucos:
-Não se morre só de enfarte, ou de glomero-nefrite crônica. Morre-se também de saudade – disse ele um dia.
Foi assim, de saudade, que se foi, em setembro de 1974.
Só então voltou ao Rio de Janeiro, enterrado no cemitério São João Batista.
Pensei nos dois, em Betinho e Josué de Castro.
E no quanto gostariam ter vivido a experiência do governo Lula, a clareza, a lucidez com que o presidente-operário, e só poderia ser ele, enfrentou o problema da fome.
Com uma política pública que retirou da miséria, do pesadelo da fome, mais de 36 milhões de pessoas, exatamente aqueles que até ali estavam distantes da cidadania, os homens-caranguejo, os homens do lixo, os moradores de rua, os do trabalho escravo no campo, os desempregados, os sem eira nem beira.
Estivessem vivos hoje, Betinho e Josué de Castro, certamente estariam nas ruas para derrotar o governo golpista que subtraiu a vontade de 54 milhões de brasileiros que elegeram a presidenta Dilma.
O golpe representa uma tentativa de volta ao passado, uma avassaladora retirada de direitos tão duramente conquistados, a nos fazer retroceder décadas e a causar sofrimentos inimagináveis para o povo brasileiro, a trazer de volta o espectro da fome, e isso certamente não vai ser aceito pelas trabalhadoras e trabalhadores.