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O enigma Neymar. Ou a Globo quebrou o futebol brasileiro

Por que o Bayern não quis comprar o Neymar ?
publicado 02/06/2013
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O Conversa Afiada reproduz excelente artigo de Hans Ulrich Gumbrecht, a única coisa que presta no Estadão deste domingo:


O enigma Neymar



A saída do principal jogador brasileiro, mais por motivos atléticos que financeiros, para um Barça não mais no auge, pode ter ocorrido tarde demais


Hans Ulrich Gumbrecht

Aos 21 anos de idade, Neymar ficou em 13º lugar entre os melhores jogadores de futebol de 2012 (na lista do jornal Manchester Guardian); dizem que sua renda pessoal é a sétima mais alta nesse esporte, internacionalmente; e alguns especialistas o consideram o atleta mais vendável comercialmente (não só no futebol) em escala global. São números e feitos notáveis para alguém que acaba de sair da adolescência, mas, de novo num contexto mais específico, são também decepcionantes e enigmáticos. Para o Brasil, país que dominou o futebol – ao menos o das seleções nacionais – durante quase toda a segunda metade do século passado (de 1958 a 2002) e organizará a Copa do Mundo no próximo ano, só pode ser frustrante que nenhum de seus cidadãos esteja entre os dez melhores jogadores em atuação no mundo. É também curioso que um jogador colocado em 13º lugar entre os melhores possa ser visto com a maior promessa financeira.

Qual será o potencial específico de Neymar, capaz de explicar essa contradição? Há ao menos três respostas. Obviamente, espera-se que um atleta de 21 anos ainda vá melhorar. Depois, o passado glorioso do futebol brasileiro estimula a antecipação de que Neymar irá muito além do seu nível atual de jogo, contribuindo para o restabelecimento do que costumava ser o normal até recentemente – e ameaça não retornar jamais: a primazia futebolística mundial do Brasil. Por último, não ficará claro, apesar dos muitos campeonatos vencidos e muitos recordes quebrados por Neymar na América do Sul, quão bom ele é realmente antes de se expor ao nível atlético das divisões principais do futebol europeu.

O fato de Neymar ter permanecido no Brasil para jogar suas quatro primeiras temporadas como profissional prova que, hoje, a economia de seu país compete (aliás, de longe supera) com a da maioria das europeias, como a da Espanha, o que é motivo de orgulho nacional. Estou convencido, portanto, de que alguns clubes brasileiros, e seus patrocinadores, poderiam ter acomodado Neymar no país, pagando mais que o oferecido pelo Barcelona. Mas o que o Brasil não pode oferecer ao maior astro do futebol nacional é uma estrutura institucional para desenvolver suas habilidades pela competição e a instrução diárias. Além de uma administração famosa pela precariedade, tanto em nível de clubes como em nível nacional, uma administração mais centrada nas finanças pessoais dos funcionários que na dos jogadores, que por isso obriga a maioria destes a partir para a Europa, o Oriente Médio e até a China; além da estrutura das competições de futebol profissional no Brasil, com suas ligas regionais e seus campeonatos em duas fases que precisam urgentemente de reformas para produzir um nível de competição superior e mais consistente, não surgiu nenhum técnico de futebol brasileiro, nas últimas décadas, que tenha praticado com sucesso as mais recentes filosofias e estratégias do jogo. A volta de Felipão como técnico da seleção nacional – e, num momento breve, de Ronaldinho como capitão – podem ser consideradas boas numa situação de emergência, mas apenas por absoluta falta de alternativa; quer dizer, por causa de o desenvolvimento institucional e intelectual do futebol no Brasil ter ficado parado no tempo.

Seja qual for a quantia exata (mas certamente assombrosa) que o Santos FC, vários grupos de interesses financeiros no Brasil e até a família de Neymar receberão com a transferência para o Barcelona, a razão verdadeira e imperativa dessa medida é mais atlética do que financeira. Não só ele já perdeu, diferentemente de Lionel Messi, por exemplo, quatro preciosos anos para polir seu talento. Sobretudo o Brasil, como nação do futebol, precisa desesperadamente que seu grande protagonista contemporâneo melhore seu desempenho no pouco tempo que resta até o início do Campeonato Mundial de Futebol em casa.

Dessa perspectiva, duplamente atlética, e com Neymar dizendo que é "o homem mais feliz" após sua decisão, a questão realmente relevante é se o Barcelona se mostrará o destino certo para Neymar – o que seguramente teria sido o caso dois ou três anos atrás, quando, sabemos agora, o primeiro adiantamento de 10 milhões cruzou o Atlântico da Catalunha para Santos. Sem a menor dúvida, o Barça foi o time dominante no futebol da última década, mas alguns de seus principais jogadores estão visivelmente envelhecendo e, apesar do título espanhol deste ano, o desempenho sob Tito Vilanova esteve numa espiral descendente na segunda metade da última temporada. Para piorar, o cordial Messi, a cujo lado Neymar terá de encontrar um papel coadjuvante, não prima pela reputação de paciência com potenciais competidores. Realisticamente falando, é impossível dizer se a razão está com Tostão na sua previsão de que os dois atacantes lucrarão por jogarem juntos – ou com Johan Cruyff, que comentou curto e grosso que não colocaria "dois capitães no mesmo barco". No mundo do futebol espanhol, porém, a compra de Neymar tem o valor de um novo triunfo indiscutível da aura de sucesso e qualidade do Barça sobre o dinheiro do presidente Florentino Pérez do Real Madrid.

Há motivos para alegria entre fãs de Neymar e para todos que se importam com o futebol brasileiro, mas também um último ponto de preocupação. Nem o Bayern de Munique nem o Borussia Dortmund, que jogaram uma impressionante final da Copa dos Campões no fim de semana passado após terem eliminado os dois principais times espanhóis, entraram na recente disputa por Neymar, embora os dois clubes, um com Pep Guardiola e outro com Juergen Klopp, hoje os técnicos mais modernos internacionalmente, sempre tenham mostrado muito interesse por talentos brasileiros. Para o Borussia, a compra de Neymar possivelmente estava fora do alcance financeiro. Mas o Bayern, de longe o clube de futebol mais rico do mundo, simplesmente não mostrou nenhum interesse. Será que a decisão de Neymar veio demasiado tarde, afinal? / Tradução de Celso  Paciornik

*Hans Ulrich Gumbrecht é professor de literatura na Universidade Stanford e autor, entre outros livros, de Elogio da Beleza Atlética (Cia. das Letras)