Bolsodória passou mel na tortura
Hübner: ele também acha que erro da ditadura foi torturar e não matar?
publicado
25/05/2019
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De Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e professor da USP, na Época:
Gentil com Jair, João?
Bill de Blasio, prefeito de Nova York, não estava na festa. Semanas antes, mandara avisar a Bolsonaro que “seu ódio não é bem-vindo”. Por considerar que a declaração caracterizava a “ideologização da atividade”, o presidente brasileiro cancelou a visita. Jair acha ideológico o que não é espelho. Desconfia que sua sombra também conspira contra ele. O prefeito nova-iorquino aproveitou para cutucar a masculinidade do capitão: “Valentões geralmente não aguentam um tranco”. Ernesto Araújo não avisou que, na diplomacia, presidente não passa recibo para prefeito.
O evento de homenagem a Bolsonaro foi mantido, e João Doria farejou a oportunidade. Avisou que falaria em inglês para que o prefeito não pudesse se fazer de desentendido: “Da próxima vez, seja gentil com o presidente do Brasil. (...) Você pode não gostar de Jair Bolsonaro, mas ele é o presidente eleito e merece respeito em qualquer parte do mundo, sobretudo aqui na América”. Lembrou que aprendeu a respeitar “a América” por “seu respeito a liberdade, pluralidade e direitos universais”. Encerrou com um grito de “Viva o Brasil!”.
Qual Brasil, João? O Brasil do “não vou combater nem discriminar, mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”? Do “filho gayzinho leva um coro e muda seu comportamento”? Ou aquele do “erro da ditadura foi torturar e não matar” e do “Polícia Militar do Brasil tinha que matar é mais”? Por essas rasteiras da história, esse Brasil assumiu a Presidência.
Por falar em polícia que mata e tortura, João, lembro-me também do estado brasileiro em que, “a partir de janeiro, polícia vai atirar para matar”, do, “se forem bandidos, estão indo para o lugar que merecem” ou do que dá “parabéns aos policiais por colocarem bandidos no cemitério”. Por essas surpresas da história, esse virou governador de São Paulo.
Desculpe tirar suas frases do contexto, João, corrija-me por favor se elas queriam dizer algo diverso de sua literalidade. Alguém precisa lhe dizer que este Brasil não é nem o da Constituição brasileira, nem o da Constituição da “América”, como prefere. Goste-se ou não do gesto de Bill de Blasio, a provocação estava em total sintonia com os ideais de “liberdade, pluralidade e direitos universais”. Combater o ódio ao qual ele se referia representa mais brasileiros do que imagina (pelo menos os quase 60% do eleitorado brasileiro que não votou em Jair Bolsonaro).
No campo da segurança, a linhagem de Doria é apenas um pouco mais polida e envernizada. Quando a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, após o trabalhoso concerto entre vários partidos espalhados pelo espectro ideológico e o intenso diálogo com a sociedade civil, aprovou a lei de criação do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, Doria disse que, embora reconhecesse “os nobres propósitos do legislador”, viu-se “compelido a negar assentimento ao projeto”. O veto foi uma pérola do que José Carlos Dias chamou de “Brasil declaratório”, aquele que “brada sua civilidade enquanto corrói os pilares da democracia por dentro”.
As razões jurídicas do veto desprezaram as especificidades do órgão e recorreram a generalidades sobre separação de Poderes e simetria federativa para impedir a inovação institucional. Argumento para bacharel nenhum botar defeito. Notas de repúdio ao veto foram emitidas por todos os órgãos congêneres pelo país, pelo Ministério Público Federal e por mais de 50 organizações da sociedade civil. O Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, que integraria a estrutura do próprio Legislativo paulista, teria função de monitorar práticas de violência em prisões e delegacias, inspirado em órgãos parecidos de diversas partes do mundo e também de outros estados brasileiros e do governo federal.
Se sincera a motivação do veto, um governador preocupado com a tortura no estado que mais encarcera no país teria apresentado alternativa institucional que sanasse as alegadas ilegalidades. A sociedade paulista permanece à espera de mais do que isso: que ofereça soluções para a segurança baseadas em ciência e que comece por investir na dignidade de policiais, como prometeu em campanha. Em nome dos “direitos universais da América”, João.
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