Lage: militares capitulam como em Vichy
De Nilson Lage, no Tijolaço:
A nossa república de Vichy
Se na China houve uma revolução cultural, no Brasil também, embora restrita às elites. E em nenhum outro setor a mudança revelou-se mais chocante do que no meio militar.
As forças armadas brasileiras, reformuladas e orgulhosas de feitos na guerra contra o Paraguai, amadureceram, no final do Império, ao embalo de um positivismo herdado, em tese, de Augusto Comte, mas que, na prática, refletia o cientificismo lógico que se formulava por aquela época na Europa e aqui chegava por via das escolas militares de onde saíam formados oficiais e engenheiros.
Na República Velha, que o civilismo conduziria ao domínio das oligarquias mais poderosas (de Minas Gerais e, crescentemente, de São Paulo) e daí à estagnação e à dependência, o Exército abrigou oposição nacionalista e modernizadora. O movimento dos jovens oficiais que pegaram em armas, por várias vezes, na década de 1920, chegou ao poder, afinal, no vácuo do comércio exterior imposto pelo craque da Bolsa de Nova York, quando os gaúchos amarraram a rédea de seus cavalos no Obelisco da Praça Paris, no Rio de Janeiro, em 3 de novembro de 1930.
Em muitos sentidos, o governo Vargas realizou o ideário dos tenentes ou, pelo menos, da fração dominante deles, resistente aos apelos do movimento comunista a que se converteu o capitão Luís Carlos Prestes. Cuidou de impor o poder central sobre as oligarquias; planejar a industrialização com a criação de mercado interno protegido e de uma classe trabalhadora urbana institucionalizada; profissionalizar o serviço público; expandir as redes de ensino técnico e científico etc.
A mensagem veiculada pela Rádio Nacional, fundada em 1936 para exercer o poder psicossocial com vistas à unidade territorial do país, priorizava a integração das regiões e das etnias pelo diálogo, proteção das nações indígenas remanescentes e exaltação das culturas formadoras. Era tempo de Cândido Rondon, Villa-Lobos, Roger Bastide, Guimarães Rosa e Dorival Caymmi.
A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial mudaria essa perspectiva. A promessa de financiamento americano (que, afinal, não aconteceu) para industrialização do Brasil no pós-guerra, aliada à admiração pela modernidade militar, induziu a crescente integração ao clima da guerra fria. A aceitação do discurso ideológico que confronta, como se fossem similares, o trabalhismo latino-americano, o sindicalismo, o socialismo europeu, o comunismo revolucionário e afins, colocou em segundo plano o culto da legalidade no qual se apoiava a estabilidade do país.
Ainda nos anos 1960, a retórica da guerra fria serviu de biombo para manobras de afirmação da soberania, como a implantação da malha de micro-ondas para a Rede Amazônica de TV, da Zona Franca de Manaus e dos batalhões de selva. Dentre as facções que se digladiavam em silêncio nos quartéis, configuraram-se dois segmentos dominantes: o que defendia a expansão do poder nacional em escala correspondente ao potencial econômico do país (hegemônico no governo Geisel) e a que, em nome de discursos éticos e preconceitos arraigados, priorizava a repressão interna, muitas vezes insana ou criminosa, como nos casos do Brigadeiro Burnier e do Coronel Brilhante Ustra.
Nos anos que se seguiram ao fim dos regimes militares, enquanto o neoliberalismo acentuava o avanço do capital financeiro sobre as nações vulneráveis do Sul, ocorreu progressivo encolhimento cultural dos centros pensantes das forças armadas, em particular da Escola Superior de Guerra, contaminada pelo espírito minimalista incorporado, décadas antes, aos currículos da Academia Militar de Agulhas Negra.
No governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, os militares já não tinham clareza, vontade ou poder para impedir a desnacionalização de satélites em que trafegava a comunicação estratégica do país ou a abertura indiscriminada da exploração de riquezas minerais, com a entrega a preço vil da Companhia Vale do Rio Doce e a fragilização do monopólio da exploração do petróleo.
O divórcio entre a nação-estado e o segmento dominante nas forças armadas, sobretudo no Exército, marcou os governos trabalhistas, em que pese seu projeto nacionalista. Ampliou-se a infiltração de agentes estrangeiros e o contágio das corporações estatais frente a uma gestão ingênua. O domínio bancário da mídia e a aplicação de novas técnicas da guerra híbrida às redes sociais em expansão somaram-se para desarmar e tornar inviável, de imediato, a resistência.
Em contexto parecido, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1940, o Marechal Henri Philippe Benoni Omer Joseph Pétain, herói nacional francês, capitulou em Vichy frente as tropas alemães. Os generais que partilham, hoje, o poder em Brasília fariam bem em tê-lo por patrono.
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