1% dos brasileiros embolsa 23% da renda
Por André Barrocal, na Carta Capital:
Convicta de ser "apenas" classe média, a turma do 1% não se enxerga
O Brasil de Michel Temer pediu no ano passado adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, um clube de 35 nações ricas ou simpatizantes, mas, por enquanto, passa vergonha, pois os Estados Unidos preferem a entrada da Argentina de Mauricio Macri, amigo de Donald Trump. Em 15 de junho, a OCDE foi motivo de outro embaraço nacional, por razões um pouco mais antigas do que o governo Temer.
Ao estudar como tem sido a mobilidade social desde a década de 1990, a entidade constatou que a coisa vai mal mundo afora e pior ainda por aqui. A distância entre ricos e pobres aumenta no planeta, especialmente desde a crise financeira global de 2008. É cada vez mais difícil que alguém nascido na pobreza melhore de vida e alcance o padrão médio dos conterrâneos.
Nesse quesito, o Brasil figura em penúltimo lugar em um ranking de 30 países, ao lado da África do Sul e à frente apenas da Colômbia. De cada 10 filhos de famílias brasileiras miseráveis, 3,5 morrerão miseráveis e somente um tem chance de chegar ao topo.
Para quem já está no topo, esta terra em que se plantando tudo dá é, ao contrário, uma delícia. Quase metade dos descendentes dos endinheirados tende a prosperar, e andar para trás é um risco para bem poucos.
“No Brasil, as circunstâncias dos pais desempenham um fator importante na vida das pessoas. O status econômico e social transmite-se fortemente através das gerações”, diz a OCDE na pesquisa “Elevador social quebrado?” A reprodução do status através do berço é, certamente, o caso do 1% mais rico do Brasil. Por aqui, essa turma leva para a casa uma fatia da renda nacional com uma gula peculiar, e tem sido assim há quase um século.
É o que conta uma tese de doutorado em sociologia apresentada na Universidade de Brasília, a UnB, em 2016, com o título “A Desigualdade Vista do Topo: a Concentração de Renda Entre os Ricos no Brasil, 1926-2013”, ganhadora no ano passado do prêmio de melhor tese do ramo.
Segundo seu autor, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os brasileiros do 1% embolsam historicamente de 20% a 25% da riqueza nacional, com uma média anual de 23%, enquanto em outras nações marcadas pela desigualdade, como EUA e Colômbia, a mordida é de 20% para baixo.
(…) A turma do 1% levou para casa, no ano passado, 36 vezes o que ficou com a metade mais pobre dos brasileiros, sendo este último grupo formado por pessoas com renda média de 750 reais mensais. Quer dizer, quem embolsa 27 mil por mês pode espernear que é “apenas” classe média, mas, diante do nível de renda de um país de 207 milhões de habitantes, o esperneio é pura modéstia.
São ricos, sim. A casta do 1% goza de certos privilégios para garantir sua reprodução através das gerações que não se resume a grana. É o que o sociólogo Jessé Souza, ex-presidente do Ipea, chama de “capital cultural”, conceito desenvolvido por outro sociólogo, o francês Pierre Bourdieu, morto em 2002.
Por esse conceito, quem nasce em berço de ouro recebe em casa, digamos, ferramentas afetivas e emocionais que preparam a pessoa para que suas habilidades e capacidades possam florescer ao longo da vida. É bem mais do que educação, esta citada na pesquisa da OCDE como fator-chave para explicar a pouca mobilidade social no Brasil.
Uma criança que fica em casa tem mais chance de desenvolver, por exemplo, a capacidade de concentração, “que não é algo natural, é um privilégio de classe”, na visão de Jessé Souza. Democratizar o capital cultural seria a coisa mais importante nas sociedades democráticas modernas, pois o capital econômico é concentrado em todo lugar, diz.
Uma necessidade bem maior no Brasil, onde esse capital cultural é ainda mais concentrado do que na Europa, uma constatação que deveria ser levada em conta, segundo Souza, nas análises do economista francês Thomas Piketty, um dos mais renomados estudiosos da desigualdade no mundo.
Foi após o lançamento do badalado livro de Piketty, O Capital no Século XXI, publicado em 2013 na França e em 2014 por aqui, que a Receita passou a divulgar algumas estatísticas sobre o Imposto de Renda que agora permitem ter uma noção de quem faz parte da casta do 1% no Brasil.
(...) De passagem pelo Brasil, em setembro de 2017, para palestras em São Paulo e Porto Alegre, ele esboçou sua visão sobre as razões da concentração de renda no País, agora que dados começam a aparecer. Vê duas causas históricas principais.
O fato de a escravidão ter demorado para acabar (o Brasil foi o último a abolir essa coisa perversa) e a pouca cobrança de imposto dos ricos, uma arrecadação que, se fosse maior, proporcionaria ao Estado verba para ampliar investimentos capazes de dar melhores condições ou perspectivas de vida aos mais pobres, como nas áreas de educação e saúde.
(…) O Brasil tem tradição de taxar mais o consumo e menos a renda e a propriedade, ao contrário do padrão visto entre os países da OCDE. Os ricos agradecem, pois a fatia que gastam com comida, transporte e roupas é proporcionalmente bem menor do que acontece numa família pobre, obrigada a gastar tudo para sobreviver.
Eles se alimentam, sobretudo, de uma jabuticaba, cujo tamanho pode ser medido nas estatísticas da Receita sobre o Imposto de Renda. Os ricaços daqui, a turma do 1%, se esbaldam com uma isenção fiscal dada por uma lei de 1995, primeiro ano do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Quem é sócio de uma empresa e recebe lucros e dividendos dessa empresa não precisa, como pessoa física, pagar IR sobre esse ganho.
(…) Entre os presidenciáveis que estão em campo, dois têm prometido taxar lucros e dividendos, caso sejam eleitos, Ciro Gomes, do PDT, e Guilherme Boulos, do PSOL. A dupla costuma citar os donos do Itaú Unibanco como exemplos de situação inaceitável. Nos últimos cinco anos, um período em que o PIB andou para trás, os três clãs que controlam o banco, as famílias Setubal, Moreira Salles e Vilela, receberam 9 bilhões de reais em dividendos.
(…) Em sua tese sobre o 1%, Pedro Herculano escreve que “não há exemplo de país que tenha saído do nosso patamar de concentração no topo e conseguido, em condições democráticas normais, reduzi-la de forma progressiva e suave para níveis franceses ou alemães, sem rupturas ou sobressaltos. Na melhor das hipóteses, teremos de inventar algo aparentemente inédito, caso esse seja um objetivo político desejado”.
E na pior das hipóteses? “Em outros países, as elites não aceitaram pacificamente pagar mais impostos. Foi um processo caótico e violento muitas vezes”, comentou Piketty ao vir para cá em setembro. “Espero que o Brasil tenha mais sorte e possa fazer isso sem passar por choques traumáticos como as guerras.”
Em tempo: o PiG cheiroso informa que aumentou o número de jovens que, por conta do desemprego, continuam a morar com os pais: são 9,03 milhões de pessoas.
Uma criança que fica em casa tem mais chance de desenvolver, por exemplo, a capacidade de concentração, “que não é algo natural, é um privilégio de classe”, na visão de Jessé Souza. Democratizar o capital cultural seria a coisa mais importante nas sociedades democráticas modernas, pois o capital econômico é concentrado em todo lugar, diz.
Uma necessidade bem maior no Brasil, onde esse capital cultural é ainda mais concentrado do que na Europa, uma constatação que deveria ser levada em conta, segundo Souza, nas análises do economista francês Thomas Piketty, um dos mais renomados estudiosos da desigualdade no mundo.
Foi após o lançamento do badalado livro de Piketty, O Capital no Século XXI, publicado em 2013 na França e em 2014 por aqui, que a Receita passou a divulgar algumas estatísticas sobre o Imposto de Renda que agora permitem ter uma noção de quem faz parte da casta do 1% no Brasil.