O lobby por trás da insistência na cloroquina
O Conversa Afiada reproduz do Opera Mundi texto de Antonio Carlos Salles e Carlos Alessandro Silva:
Diz a lenda que ao sentar-se à mesa de pôquer para uma sessão de apostas, você concorda com a regra-mestra do jogo: a única coisa feia é perder.
De resto, vale tudo. Do blefe à simulação, da derrocada à sorte.
Essa é a visão que tem pontuado a discussão em torno da validade das substâncias cloroquina e hidroxicloroquina como tratamento de fundo para o combate ao novo coronavírus, da forma como está colocada no Brasil.
Aposta-se no experimento sem o devido respaldo científico, sem um consenso claro entre as principais entidades médicas e regulatórias do país.
Nesta semana, o tema polêmico se transformou em dilema.
O Ministério da Saúde, sob nova liderança, agora militar, autorizou o uso destas substâncias no caso de sintomas leves por meio de um protocolo bastante criticado, até mesmo por não ser assinado por um médico ou junta médica. Dois ministros, médicos, aparentemente, deixaram o cargo por não concordar com tal protocolo.
O texto final, tudo indica, foi inspirado em parecer recente do Conselho Federal de Medicina que autoriza o médico, com o consentimento do paciente, a aplicar as ditas substâncias em casos leves, moderados ou graves, embora reconheça que não há “evidências robustas de alta qualidade que possibilitem a indicação de uma terapia farmacológica específica para a covid-19”.
Na contramão, sociedades de especialidade como as de infectologia, pneumologia-tisiologia e medicina intensiva, além de cientistas de importantes centros, contraindicam a prescrição das mesmas para a covid- 19, até que as pesquisas comprovem segurança e eficácia. A Organização Mundial da Saúde também seguiu a mesma linha nesta semana.
Sem esses aportes consolidados, a dupla cloroquina-hidroxicloroquina não se viabiliza. Resta-lhe, então, o percurso mais rápido, com sombras no entorno de sua eventual adoção. E o nome disso é lobby, onde vigora a meia-verdade e o interesse de poucos. É a negação das regras às claras. O fim do compliance. Oportunismo travestido de interesse pelo bem-estar.
Da forma como o conhecemos, sem a devida transparência, em geral de cima para baixo na cadeia de decisão, com o protagonismo de atores estranhos ao assunto, dispostos a fazê-lo sem o devido arsenal de informações e argumentos.
E pior. Disparando cédulas de esperança para aqueles que de tudo farão em busca de uma solução que recupere o marido, a esposa, o filho, a avó, o amigo. Uma cartada pouco responsável, mas articulada e poderosa.
Isso explica a reação automática de cientistas e profissionais de saúde, cuja maturidade se sobrepôs ao risco da “empurroterapia” que se pretende fazer.
A plausibilidade da terapia é baixa. O lobby é de alto calibre.
Mas há um caminho para a cloroquina/hidroxicloroquina, ou mesmo para outras substâncias sob teste no mundo inteiro. Certamente não tão acelerado como estamos vendo, mas para ser percorrido em terreno seguro e iluminado, à vista de todos, aberto a opiniões e ao contraditório.
É o advocacy, a legítima defesa da causa.
Instrumento valioso quando se quer obter o reconhecimento do Estado à criação de uma política pública abrangente, não circunscrita a polos determinantes da sociedade.
Advocacy se sustenta em dados, opiniões consistentes, estudos consagrados, explicações fundamentadas, ritos processuais e todos os demais instrumentos “republicanos” para validar o interesse público ou privado.
Um exemplo bem-sucedido e ainda recente em que o advocacy permeou todos os estágios dessa combinação de agentes sociais e legais, foi a campanha “Obesidade Sem Marcas”, que defendeu a cirurgia bariátrica e metabólica menos invasiva (por videolaparoscopia) como opção terapêutica para obesos mórbidos sem resposta a tratamentos clínicos, a partir de uma iniciativa de sociedade médica.
A prática do advocacy no Brasil é um escape profissional pela ausência de uma legislação que regulamente a atividade de lobby, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e nos países membros da União Europeia.
Inúmeros projetos de lei já foram propostos e levados ao Congresso, sem o devido grau de reconhecimento legislativo para qualificar a análise e dar a devida dimensão que o tema requer.
Enquanto o advocacy trilha os caminhos das regras, o lobby voa para emplacar interesses diversos.
Mesmo na terra de Trump parece haver bons exemplos de resistência ao lobby. Em abril, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) já havia retirado de suas orientações a médicos a recomendação destas substâncias para o tratamento do novo coronavírus.
O imunologista Anthony Fauci, diretor do prestigiado Instituto de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, é outro exemplo. Mesmo ao lado do presidente norte-americano nos pronunciamentos oficiais, vem usando seu prestígio científico para discordar de soluções imediatistas.
Assim, impõe-se com altivez ante ações apressadas em ano de eleições presidenciais.
O que a dupla cloroquina-hidroxicloroquina sonha agora é ter nas mãos um royal straight flush, a ambicionada combinação das cartas mágicas no pôquer, vulgarmente conhecida como sorte.
Porém, se decidir trilhar o caminho do advocacy, escalando suas etapas formais e estratégicas, poderá em menos de um ano estar disponível no SUS e rede privada, desde que confirmadas suas premissas.
Antonio Carlos Salles e Carlos Alessandro Silva são consultores em relações públicas e governamentais