Roberto Marinho e Nascimento Brito enterraram o JB
O Globo de hoje, na página A7, a página de (uma só) Opinião, parece encerrar a Missa de Sétimo Dia da edição impressa do Jornal do Brasil.
Com a leitura do Globo, confesso que verti lágrimas copiosas.
Chorei como Rigoletto, no Ato III, diria o Nelson Rodrigues.
Que pena, o JB fechou.
Que saudades do Dr. Brito, da Condessa, do prédio da Av. Brasil, 500.
Que resistência, que liberais, que romantismo !
Vamos com calma.
O necrológio do JB deveria tratar de personagens solenemente ignorados.
O Dr. Roberto Marinho, aqui também tratado como Rupert Marinho, em homenagem à sua semelhança com Rupert Murdoch, e o Dr. Brito, o Nascimento Brito, dono e coveiro do JB.
Os redatores patrólogos preferiram recordar a Baía de Guanabara que se via da redação do JB a tratar dos patrões.
Como diz o Mino Carta, o Brasil é único lugar do mundo em que jornalista chama patrão de colega.
O Dr. Roberto Marinho infringiu todas as normas de Ética e de Boa Governança para que o Globo quebrasse o Jornal do Brasil.
Como o Brasil é um país (quase) sem leis.
E como boa parte da agonia do JB se deu no regime militar – de que Marinho foi beneficiário e benfeitor - Marinho matou Nascimento Brito a conta-gotas.
Vendeu anuncio do Globo a preço de dumping, com que o JB não podia competir.
Fez venda-casada com a televisão: anuncie no Globo que te dou a TV; e vice-versa.
Se alguém anunciava no JB e não anunciava no Globo, recebia um telefonema logo de manhã entre carinhoso e ameaçador.
Roberto Marinho se aproveitou da cross-ownership de uma forma vergonhosa: a TV Globo faz anúncio do jornal O Globo, a rádio faz anúncio do jornal, e o jornal da TV e da rádio.
A partir de sexta-feira, na praça do Rio, a TV massacrava o espectador com chamadas para o Globo de domingo, a edição mais lucrativa da semana.
O JB fez uma pesquisa, a certa altura, e descobriu que muita gente achava que o produto “jornal” era o Globo.
O Nascimento Brito não reagiu ?
Não.
Por que não ?
Porque era arrogante.
E porque era incompetente.
A arrogância o impediu de admitir que o Globo se tornava mais forte do que ele, aos poucos.
E incompetente, porque não soube montar opções à ofensiva do Globo.
Nem empresariais, nem políticas.
O Jornal do Brasil recebeu do JK um canal de televisão em Niterói.
Ao mesmo tempo em que Rupert Marinho se associou ao Time-Life, Brito namorou a CBS e a ABC americanas.
As negociações não foram em frente, porque ele não tinha grana, não sabia como levantar grana, e porque ficou com medo da campanha que se moveu contra a ligação do Rupert Marinho com o grupo americano Time-Life.
(Essa ligação ilegal só se “limpou” no Governo Costa e Silva, quando o Governo militar encheu a Globo de anúncio pelo preço de tabela, para Rupert Marinho comprar de volta as ações dos americanos.)
Nascimento Brito chegou a contratar Walter Clark para dirigir a futura TV JB.
Mandou o jornalista Carlos Lemos estagiar na BBC.
Mas, não teve bala.
Quando os Associados quebraram, Brito esboçou concorrer para herdar as concessões.
Nem foi ao páreo.
Marinho trabalhou o Governo Figueiredo, que teve a genial idéia de entregar a Silvio Santos e à Manchete de Adolfo Bloch.
(O que não poderia ser melhor para o Dr Rupert.)
Depois, Brito foi incapaz de combinar força política com ações judiciais e enfrentar a guerra comercial, desleal, que Rupert Marinho desfechava.
Não teve coragem.
Nem sabia como enfrentar Rupert Marinho.
E sobre o “liberalismo” do Nascimento Brito, calma lá !
Sobre a resistência ao regime militar, também devagar com o andor.
Brito navegou no regime militar mais prá lá do que prá cá.
Num certo momento, Brito entrou na conspiração do general Hugo Abreu (o “Chupetinha”, como ele chamava, com desprezo), para fazer o “Frotinha”, como ele dizia, com deboche (Ministro do Exercito Silvio Frota) sucessor de Geisel.
(Geisel empalou o “Frotinha” com a facilidade com que se mata uma mosca. Mas, o notável colonista (**) Elio Gaspari, em obra interminável, transformou o episódio numa Batalha das Termópilas, para que Geisel saísse como o Xerxes dos Pampas.)
Nascimento Brito não era melhor nem pior o que qualquer dono do PiG (*).
Em alguns momentos, porém, como acontece também no PiG (*), ele tinha surtos e se lembrava do papel da Imprensa.
Tive a oportunidade de viver alguns desses breves momentos.
E transcrevo aqui artigo que publiquei no JB quando ele morreu, em fevereiro de 2003.
Transcrevo, também, para registrar o que fiz quando dirigi o JB.
Já na época, quando o artigo saiu, meu bom amigo Milton Temer me disse: mas, você escreveu sobre você.
Sim, fiz isso.
Escrevi sobre mim mesmo.
Porque eu sabia, como se vê agora, que notáveis coleguinhas, ao historiar a debacle do JB, omitiriam minha passagem por lá.
Foi o caso, por exemplo, de Ricardo Kotscho, assim me disseram.
Kotscho foi reppórter do JB na Europa, quando eu chefiava a redação.
E jogou o JB numa monumental fria com uma informação falsa sobre um suspeito de um crime na Av Niemeyer, no Rio.
Talvez por isso ele prefira suprimir esse breve capitulo de sua gloriosa carreira.
Vamos ao que eu disse quando o Dr Brito morreu.
(Os necrológios costumam ser generosos ...)
O Norte e o Sul
Paulo Henrique Amorim
O Dr. Brito tinha atributos que os outros, como Chateaubriand e Roberto Marinho, não tinham. A começar pela altura. E especialmente o garbo. O Dr. Brito não era um empresário, no sentido de empreendedor. Nem um administrador. Ele era “dono de jornal”, atividade que dispensa as outras. Aliás, Chateaubriand e Roberto Marinho também eles foram mais “donos de jornal” do que empresários. Ser “dono de jornal” precede a profissionalização do negócio da comunicação e tinha muito a ver com controle político e glamour.
O Dr. Brito olhava para Norte e para o Sul. Para o Norte, por influência da mãe, inglesa. Para o Sul, porque pertencia a uma elite que protegia e desdenhava. Vou tratar do Dr Brito virado para o Norte. Porque foi com ele nessa posição que vivi algumas das experiências mais ricas do meu trabalho como jornalista.
Trabalhei com ele no período que começa em Geisel e quase chega a Tancredo. Fui editor de economia, redator chefe e editor do jornal.
Havia seca no Nordeste e o correspondente Egidio Serpa mandou uma foto em que um retirante barbudo e esquálido segurava uma lagartixa que se preparava para comer. Dei a foto aberta na primeira página, no alto, à direita. Na mesma edição, uma foto interna mostrava Delfim Netto e Ernane Galveas num jantar em Paris. O correspondente William Waack mandou o cardápio e o preço de cada prato. No dia seguinte, Chico Caruso fez o retirante nordestino bater no vidro do restaurante com a lagartixa, e os dois ministros lá dentro, perplexos.
Não choveu no Ceará mas choveu canivete em cima de mim. E o Dr. Brito firme.
O Papa veio ao Brasil. Chovia canivete. Uma cerimônia no Pacaembu, à noite, o estádio cheio. O Papa debaixo do guarda-chuva, com a ajuda de um operário, foge do script e começa naquele português do Papa: “Pela Justiça ! Pela Justiça social !”
Manchete do Jornal do Brasil no dia seguinte: “Papa aos operários: ‘Pela Justiça. Pela justiça social !’”. Com interjeição e tudo. Choveu canivete de novo. Um cavalheiro de suspensórios bradava do Palácio do Planalto: “ Mentira ! O Papa não disse isso !” E o Dr. Brito firme.
Nunca tive muita certeza de o Dr. Brito comprar essas brigas. Porém, uma certeza eu tinha. Ele queria demonstrar, todo dia, que era melhor que “ele”. Quer dizer, O Globo. E para ser melhor que o Globo era preciso fazer um jornal virado para o Norte. Foi por isso que Odylo Costa, filho, Jânio de Freitas, Alberto Dines e Walter Fontoura sentaram naquela cadeira. Duas, três vezes por semana, na hora mais alucinada do fechamento, lá vinha o Dr. Brito com o Dr. Bernard (Bernard Campos, seu escudeiro, a vida toda) a tiracolo, à minha sala, para saber “como é que nós vamos pegar ‘ele’ amanhã ?”
Vivi esse cotejo entre o Norte e o Sul em dois momentos inesquecíveis. Em 1981, na bomba do Riocentro. O chefe de reportagem era Luís Mário Gazzaneo. Os dois repórteres, Eraldo Dias e Fritz Utzeri. Eu larguei mal. No dia, fiquei com medo de dar dimensão política ao que poderia ser apenas um acidente trágico. O Gazaneo não se conformou: “Essa foto desse cara morto, isso é a foto do (Aldo) Moro !” Decidi dar na primeira, mas abaixo da dobra.
Falha minha. No dia seguinte, pegamos “ele”. Eraldo e Fritz reconstituíram o episódio e fizeram um desenho que explicava tudo. Tudo muito claro, desapaixonado. Era tão óbvio. Um atentado político que deu errado. Uma bomba no meio da batalha entre Golbery e Medeiros, no Palácio do Planalto. Golbery caiu fora, não porque fosse um Thomas Jefferson, mas porque Figueiredo escolheu o outro. O outro, que parecia estar no banco de trás daquele diagrama do Eraldo e do Fritz.Quando o coronel Job de Sant’ana veio explicar que eles eram as vitimas, tudo mundo já sabia – por causa do Eraldo e do Fritz – que se tratava de uma farsa.
Choveu canivete. Mas, muito. O Governo Figueiredo mostrava a cara. Me lembro que “ele” deu uma manchete para anunciar uma terceira bomba no carro. O Dr. Roberto foi chamado ao I Exército e no dia seguinte teve que engolir a manchete. Fez outra com o desmentido.
E o Dr. Brito ? Firme ? Firme.
Em 1982, o candidato a governador pela Arena, Wellington Moreira Franco, foi fazer uma visita ao Jornal do Brasil e me disse para ficar atento, porque havia a possibilidade de o pessoal da Baixada não ter aprendido a votar – e o Brizola perder muito voto. Dias depois, o repórter político Rogério Coelho Neto me disse que tinha conversado com um cara do SNI, que avisou: vai ter muito voto branco e nulo na Baixada. E se o Brizola não sair muito forte da Baixada, o Moreira, que sai forte do interior, ganha a eleição.
Aí, apareceu na redação alguém para oferecer os serviços de apuração da Proconsult, a empresa de informática que ia contar os votos para o Tribunal Eleitoral. Pedi ao redator-chefe, Hedyl Rodrigues Valle Jr, e ao responsável pela estatística da nossa cobertura, Pedro do Couto, para assistirem à conversa. Mesma história: o Brizola vai sair fraco da Baixada. É uma situação inesperada, difícil de captar, disse o personagem. É melhor ficar com os nossos serviços a comprometer a credibilidade do Jornal do Brasil.
Ficar com a Proconsult – que ia fazer o mesmo serviço para “ele” – saía mais barato. Montar estrutura própria, mesmo com a ajuda da Radio JB, era mais caro. O Hedyl decidiu por mim: temos que ficar com o Pedro do Couto.
O que o Dr. Brito achava disso tudo ? O representante da Proconsult que nos procurou era da confiança da empresa. O Dr. Brito não deu palpite. Mas, era um risco. Paciência.
A Globo e o Globo saíram com projeções da vitória do Moreira. Desde o inicio, o JB (e Pedro do Couto) garantiam que a projeção com os primeiros números (em boa parte apurados pela Radio JB) permitia garantir a vitoria de Brizola. Foi um Deus nos acuda. “Ele”, Moreira. Nós, Brizola. E o Dr Brito torcia pelo Moreira. E assim foi por vários dias. Até que Pedro do Couto me ofereceu a manchete: “Brizola confirma vitória: Margem deve ser por 126 mil votos.” Erro grave, gravíssimo: foi de 121 mil.
Terminada a eleição, redigi, com prazer que sou capaz de reproduzir até agora, uma correção que ocupou toda a página três do jornal. A página em branco e no alto, ao centro, em negrito: “Correção: erramos … não foi de 126 mil, mas de 121 mil etc. e tal …”
Faltava tripudiar. Brizola às turras com a Rede Globo e nós investimos na apuração da trama da Proconsult. O repórter Ronald de Carvalho revelou o “fator Delta”, que no programa de computador tirava votos de Brizola.
Àquela altura, eu não sentia firmeza absoluta sob os pés. O Dr Brito e o Dr Bernard já não vinham tanto à minha sala. Uma coisa era acertar quem ia ganhar a eleição. Outra, mostrar que o SNI ia fraudar o resultado da eleição.
Choveu canivete. E o Dr Brito, bem, o Dr. Brito, digamos, firme.
Aí, o Dr. Brito passou muito tempo voltado ao Sul. A situação econômica do jornal se deteriorou e a redação tinha que fazer cortes. E mais cortes. Até que um dia ele me mandou embora, com a maior elegância – e ele não faria de outra forma. Eu, de minha parte, de tanto escutar o Hedyl, que já estava na televisão, me convenci: chega de ajudar a construir a imagem dos outros - trate da sua.
O Dr. Brito me mandou embora numa quinta feira. Na sexta, não abri jornal. No sábado, num hotel em Búzios, acordo quase dentro d’água. Peço o JB à camareira. Tomei um susto. Não sobrevivia uma única, mísera mudança que eu tinha feito na cara do jornal.
A essa altura, vinte anos depois, isso não tem a menor importância. O que importa é que eu trabalhei no Jornal do Brasil quando ele era o melhor jornal do Brasil. Fiz muita coisa que não queria. E fiz muita coisa que só seria possível no Jornal do Brasil.
São Paulo, 10 de fevereiro, 2003
Paulo Henrique Amorim
(*) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.
(**) Não tem nada a ver com cólon. São os colonistas do PiG (*) que combatem na milícia para derrubar o presidente Lula. E assim se comportarão sempre que um presidente no Brasil, no mundo e na Galáxia tiver origem no trabalho e, não, no capital. O Mino Carta costuma dizer que o Brasil é o único lugar do mundo em que jornalista chama patrão de colega. É esse pessoal aí.