Pequeno tratado da idiotice contemporânea, por Marilia Amorim
Marilia Amorim concedeu essa entrevista ao orgulhoso irmão, o ansioso blogueiro, por e-mail.
publicado
04/03/2012
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Marilia Amorim, Maître de Conférences da Universidade de Paris 8 e ex-professora do Departamento de Psicologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concedeu essa entrevista ao orgulhoso irmão, o ansioso blogueiro, por e-mail.
É a propósito do lançamento de seu terceiro livro na França, “Petit traitê de la bêtise contemporaine, suivi de Comment (re)devenir intelligent”.
1) Ao passar na rua, assim, caminhando contra o vento, como se reconhece um idiota ?
Acontece com todo mundo de se ver idiota em uma situação ou outra. Nenhum problema com isso pois a idiotice pessoal não é a questão. O que me preocupa é a idiotice coletiva, ou melhor, os sistemas coletivos para nos tornar idiotas.
2) Por que a sra se irrita tanto quando a publicidade, a internet ou a televisão lhe tratam de “você” ?
Ao contràrio, me tratar de “você” é perfeitamente aceitável. O que não é aceitável é que se apropriem da primeira pessoa do singular “EU” e a utilizem em meu lugar. Esse é o suprasumo da idiotice linguística, produzida como manipulação publicitária para tentar vender determinados produtos. Os exemplos que analiso no livro são conhecidos apenas pelo público francês, mas posso citar um que é de conhecimento planetário e que está na origem desse modelo. Quando a Microsoft lança o seu “computador pessoal” (personal computer) na concorrência com a MacIntosh, ela coloca na página de entrada do Windows toda a organização das pastas e dos documentos na primeira pessoa do singular: “Meus documentos”, “Minhas imagens” e assim por diante. A pergunta é: meus de quem? Quando organizo meus documentos na minha casa, não escrevo nas pastas “meus documentos” ou “minhas contas” e sim, “contas”, “documentos”, etc. Seria completamente idiota escrever isso nas minhas próprias pastas. A estratégia publicitária da Microsoft era criar no comprador e no usuário a ilusão de que ele estava “em casa”. Como atualmente os publicitários e profissionais de marketing formatam toda palavra pública, com o objetivo de “vender a idéia”, na França e nos Estados Unidos essa aberração linguística invadiu todas as esferas, mesmo aquelas onde quem fala é um poder público e não um supermercado.
3) Qual o resultado dessa apropriação do “eu”, do “você” e do “ele” pela linguagem da publicidade, da televisão e da internet ?
A apropriação do pronome EU é uma manipulação linguística que serve à lógica de mercado. Ela visa a criar no consumidor a ilusão de que ele está sendo ele mesmo quando consome. Ora, o consumo de massa é exatamente aquilo que padroniza e que apaga o Eu.
4) A tese de seu livro é “a palavra que produz a inteligência é a que transmite cultura”. Por que ?
Assim como existe a palavra que nos torna idiotas, ou que pelo menos tenta, existe aquela que nos torna inteligentes ao nos dar um lugar no processo de trasmissão e circulação da cultura. A cultura é o que resiste porque ela nos fornece elementos múltiplos, provindos dos diferentes saberes, da arte, da história, etc. para entender e valorizar a complexidade das coisas e desconfiar das simplificações idiotizantes.
5) A senhora se refere a um diálogo de Platão - “Fedro “- em que Sócrates repele a linguagem escrita. A senhora, como Sócrates, não teme ser jurássica, com suas criticas à televisão e à internet ?
Platão deixou sua obra inteiramente por escrito e somente uma leitura apressada do Fedro pode achar que ele é contra a escrita. O que ele descobriu, através de Sócrates, foi a relação entre a invenção da escrita e a transformação nos processos de memória. Essa descoberta permanece tão atual que todos os filósofos contemporãneos se baseiam em Fedro para tratar das transformações causadas pela invenção da informática. Com a escrita e, mais ainda com a informática, a memória se torna exterior, não está mais dentro da minha cabeça. A externalização permite guardar uma quantidade infinitamente maior de dados, mas ela não nos exime do que Sócrates chama de “trabalho de memória”: o trabalho de cada sujeito singular que se responsabiliza pela transmissão da cultura ao lhe atribuir valor e sentido. Sem o trabalho dos sujeitos, a memória externalizada se reduz a um arquivo frio que, por isso mesmo, acaba se perdendo. É um equívoco pensar que a informática por si só garante a preservação da cultura.
6) Quem é o “papagaio tecnológico “, um personagem de seu livro ?
O papagaio tecnológico é aquele que se refugia nos recursos técnológicos, internet, powerpoint e outros, para esconder que não tem nada a dizer. Ele repete o que todo mundo já sabe ou que faz parte das bobagens circulantes mas disfarça essa indigência com superpoduções hipermediáticas. A indigência de idéias acobertada pela superprodução hipermediática é algo muito frequente no universo internet e vem ocupando outros espaços como, por exemplo, a Universidade. Isso não significa que desprezo a tecnologia e a prova concreta disso é que um dos cursos que ministro na Universidade de Paris é um curso à distância, dado on line. A questão é saber o que você faz com a tecnologia e não pensar que ela pode fazê-lo por você.
7) A senhora não usa o Google ? Parece que não … Qual é o problema do Google ?
Uso o Google quase todo dia, até várias vezes por dia caso contrário, não poderia estar tratando desse assunto. Mas porque o fato de utilizá-lo me impediria de analisar seu funcionamento e fazer críticas? Quando você abre o Google, você cai num shopping center. A informação séria vem junto com um calhamaço de publicidade disfarçada em informação. No início, os próprios criadores do Google consideraram importante separar publicidade de informação, mas com o tempo acabaram cedendo à pressão dos anunciantes. Além disso, mesmo a informação séria ou a obra a ser consultada está submetida a uma lógica mercadológica que é a do “page ranking”: em primeiro lugar aparece a obra que apresenta maior n° de consultas, isto é, a mais cotada. Ora, a melhor obra não é necessariamente a mais cotada e num trabalho de pesquisa, seja ela acadêmica, pessoal ou existencial, uma obra desconhecida a qual ninguém até então havia dado importância pode ser decisiva. Então, para separar o joio do trigo e construir um percurso realmente original nesse shopping center da cultura é preciso ser um cidadão muito bem formado. Toda política educacional deve levar isso em conta. Não basta garantir o acesso material e técnico ao computador e à banda larga; é fundamental garantir uma boa escola que ensine o jovem e a criança a se protegerem da idiotice.
8) Qual a diferença entre o “saber da acão” e o “saber narrativo” ?
Digo que o saber narrativo é o que há de mais fundamental no ser humano. Os animais se comunicam mas não contam histórias. Quem prefere o saber da acão ao saber narrativo é a ideologia dominante e ela o faz porque o único critério de validade no saber da ação é a eficácia: bom é aquilo que funciona e, reciprocamente, se funciona é bom. Nessa lógica pragmática, o que funciona é sempre bom. Ora, um veneno também é uma coisa bastante eficaz: ele mata.
9) A sra diz que a televisão é a “psicotecnologia da idiotice”. O que a senhora tem contra a televisão ? A sra tem uma certa implicância com a “entonação“ dos apresentadores da televisão. Por que ?
Foi o filósofo Bernard Stiegler quem batizou a televisão com essa expressão que acho excelente. Mas não critico toda e qualquer televisão. A televisão que critico é aquela que está inteiramente a serviço dela mesma e de seus anunciantes, e não do espectador. O que ela quer é garantir que o sujeito não desligue nem mude de canal e desenvolve tiques de linguagem que traem essa postura. No meu livro, dou um exemplo do campeonato de tênis transmitido ao vivo pela televisão aberta francesa. Os comentaristas ocupam todo o lugar, falam sem parar e fazem com que o acontecimento crucial que é uma partida final de campeonato fique em segundo plano. Uma partida de tênis supõe silêncio: não apenas para os jogadores poderem se concentrar, mas também para aquele que assiste. Ora, a televisão quebra esse clima e introduz sua entonação “engraçadinha e simpática” cujo único significado é um irritante “Fique com a gente!”. Imagino que nas transmissões de futebol na TV brasileira deva acontecer algo parecido.
10) Todos os jornalistas se parecem ? É tudo a mesma mixórdia ?
Claro que não! Há jornalistas que trabalham se pautando por imperativos inversos ao que acabo de descrever. Eles colocam o direito do leitor ou do espectador à informação e à verdade acima de tudo e por isso, muitas vezes, arriscam as próprias vidas.
11) “As condições enunciativas da idiotice” que a senhora localiza na sociedade contemporânea são coisas nossas, do nosso tempo, ou nunca houve idiotice igual ? Essas “condições enunciativas” têm algo haver com o que se chama vulgarmente de “neo-liberalismo “, ou na sua contrafação mais erudita, de “pós-modernismo” ?
Todos os regimes totalitários criam dispositivos para nos transformar em idiotas. A ditadura militar fazia isso através da censura das falas. A ditadura do mercado transforma sutilmente a maneira de falar para dar a ilusão de que não estou submetido a nenhum poder e que sou eu o centro de tudo. “Eu isso, eu aquilo” como se fosse realmente eu quem estivesse dando as cartas. É o que chamo de totalitarismo não-autoritário pois o mercado invade todas as esferas da nossa vida sem que apareça a figura da autoridade que o representa. Essa forma de poder se esconde atrás de uma fala “simpática” ou “lúdica” o que torna a resistência e a crítica muito difíceis.
12) Como “des-conhecer a palavra que leva à idiotice” ? - como a sra recomenda no fim?
Não é isso o que eu digo. É a palavra que leva à idiotice que nos faz des-conhecer, isto é, deixar de conhecer o que conhecíamos. E o que recomendo é empreender coletivamente um “trabalho de memória” de tudo aquilo que tentam nos fazer esquecer quando nos tratam como idiotas. Nesse trabalho coletivo, é preciso não ter mêdo de ser visto como “jurássico” e assumir a responsabilidade que cabe às gerações mais velhas. Como venho de um outro tempo, conheci outros mundos, com seus defeitos e qualidades, e isso me dá elementos de comparação. A comparação é um procedimento cognitivo fundamental, é a base do raciocínio inteligente e as gerações que já nasceram dentro do funcionamento atual não podem comparar. Embora pressintam e desejem essa comparação pois ela está prevista na própria língua: é a diferença entre o verbo ser e o verbo estar. Como dizia um cartaz de “los indignados” que encontrei em Santiago de Compostela, na Galícia, “el mundo está así, no es así”.
13) Uma ultima questão: o seu estilo, coloquial, bem humorado, de tratar do leitor como interlocutor vem de Machado ou de Baudelaire: “hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!” ?
Tentei escrever um livro engraçado e, segundo o que dizem os leitores, parece que consegui. Porque o humor é uma arma muito importante contra a idiotice, sobretudo quando ela é produzida por abuso de poder. Se eu fosse o Henfil, nosso genial cartunista, que, aliás, cito nesse trabalho, esse livro seria um cartoon. Isso fica claro, por exemplo, nas várias passagens em que debocho do Sarkozy e a quem me refiro, de maneira ironicamente pomposa, como o Presidente da República Francesa, vulgo, PRF...
Não é para ter orgulho, amigo navegante ?
Paulo Henrique Amorim