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Tribunal de exceção. Brodsky: escrevo poemas

"Não interessa o que o senhor supõe"
publicado 09/10/2012
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Diante do domínio do fato, das ilações, deduções, provas  tenues, torrenciais, quimeras e supressão do ato de ofício e do “em dúvida pro réu”... diante de tudo isso, um exemplo eloquente de como funciona um tribunal de exceção, em Moscou ou em Brasilia:

Da peça “Liberdade, Liberdade”, de Millor Fernandes e Flavio Rangel - http://www.scribd.com/doc/65186579/Liberdade-liberdade-Millor-Fernandes

VOZ GRAVADA
No ano passado foi julgado na União Soviética o poeta Joseph Brodsky. Aqui estão trechos taquigráficos de seu julgamento.

(Acende-se a luz sobre Paulo Autran e Oduvaldo Vianna Filho)

PAULO
Qual é seu nome?

VIANNA
Joseph Brodsky

PAULO
Qual é sua ocupação?

VIANNA
Escrevo poemas. Traduzo. Suponho que...

PAULO
Não interessa o que o senhor supõe. Fique em pé respeitosamente. Não se encoste na parede. Olhe para a corte. Responda com respeito. O senhor tem um trabalho regular?

VIANNA
Pensei que fosse um trabalho regular.

PAULO
Dê uma resposta precisa.

VIANNA
Eu escrevia poemas: julguei que seriam publicados. Supus...

PAULO
Não interessa o que o senhor supõe. Responda porque não trabalhava.

VIANNA
Eu trabalhava; eu escrevia poemas.

PAULO
Isso não interessa. Queremos saber a que instituição o senhor estava ligado.

VIANNA
Tinha contatos com uma editora.

PAULO
Há quanto tempo o senhor trabalha?

VIANNA
Tenho trabalhado arduamente.

PAULO
Ora, arduamente! Responda certo.

VIANNA
Cinco anos.

PAULO
Onde o senhor trabalhou?

VIANNA
Numa fábrica, em expedições geológicas...

PAULO
Quanto tempo trabalhou na fábrica?

VIANNA
Um ano.

PAULO
E qual é seu trabalho real?

VIANNA
Eu sou um poeta. E tradutor de poesia.

PAULO
Quem reconheceu o senhor como poeta e lhe deu um lugar entre eles?

VIANNA
Ninguém. E quem me deu um lugar entre a raça humana?

PAULO
O senhor aprendeu isso?

VIANNA
O quê?

PAULO
A ser poeta? Não tentou ir a uma universidade onde as pessoas são ensinadas, onde aprendem?

VIANNA
Não pensei que isso pudesse ser ensinado.

PAULO
Então como...?

VIANNA
Eu pensei que... por vontade de Deus...

PAULO
É possível ao senhor viver do dinheiro que ganha?

VIANNA
É possível. Desde que me prenderam sou assinado a assinar um documento, todos os dias, declarando que gastam comigo quarenta copeques. Eu ganhava mais do que isso por dia.

PAULO
O senhor não precisa de ternos, sapatos?

VIANNA
Eu tinha um terno. É velho, mas é um bom terno. Não preciso de outro.

PAULO
Os especialistas aprovaram seus poemas?

VIANNA
Sim, fui publicado na Antologia do Poetas Inéditos e fiz leituras de traduções para o polonês.

PAULO
Seria melhor, Brodsky, que explicasse à corte porque não trabalhava no intervalo de seus trabalhos.

VIANNA
Eu trabalhava. Eu escrevia poemas.

PAULO
Mas existem pessoas que trabalham em uma fábrica e escrevem poemas ao mesmo tempo. O que o impediu de fazer isso?

VIANNA
As pessoas não são iguais. Mesmo a cor dos olhos, dos cabelos... a expressão do rosto.

PAULO
Isso não é novidade. Qualquer criança sabe disso. Seria melhor que explicasse qual a sua contribuição para o movimento comunista.

VIANNA
A construção do comunismo não significa somente o trabalho do carpinteiro ou o cultivo do solo. Significa também o trabalho intelectual, o...

PAULO
Não interessam as palavras pomposas. Responda como pretende organizar suas atividades de trabalho no futuro.

VIANNA
Eu queria escrever poesia e traduzir. Mas se isso contraria a regra geral, arranjarei um trabalho... e escreverei poesia.

PAULO
O senhor tem algum pedido a fazer a corte?

VIANNA
Eu gostaria de saber porque fui preso.

PAULO
Isso não é um pedido; é uma pergunta.

VIANNA
Então não tenho nenhum pedido.

(As luzes se acendem sobre os dois, e um foco se acende sobre a atriz.)

TEREZA RACHEL
Brodsky foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados, numa fazenda estatal de Arcangel, na função de carregador de estrume. O poeta tinha vinte e quatro anos.