Rubem Braga e o poder. Segundo Santayana
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Rubem Braga e o poder
Mauro Santayana
Em 1990, Rubem Braga descobriu que estava com câncer. O presidente Collor confiscara todos os haveres bancários, incluídos os das cadernetas de poupança. Carlos Castello Branco – que não era amigo do cronista e havia feito uma cirurgia nos Estados Unidos, para livrar-se de mal semelhante – escreveu-lhe uma carta. Nela, com grande otimismo, aconselhava o autor de O Conde e o Passarinho a tratar-se no mesmo hospital em que se tratara, creio que em Houston.
Rubem disse aos amigos comuns que iria a Houston, com prazer, desde que o governo liberasse as suas aplicações. Sua amiga Vera Brant acionou as excelentes relações em Brasília, para que o dinheiro de Rubem – não tão grande assim – lhe fosse entregue para a viagem e o tratamento, comunicou ao cronista as suas diligências e a confiança em que tudo seria resolvido logo.
Rubem, segundo alguns amigos, começou a pensar na viagem, enquanto o tempo passava. Uma semana, duas semanas, um mês – e nada. As pessoas do governo, contatadas por Vera Brant, davam vagas informações do pleito, até que a brava mineira reclamou uma resposta clara: o Ministério da Fazenda – ou da Economia, não me lembro ao certo – informou que se todos os que estivessem com câncer pedissem a liberação de seus haveres, o Plano Collor fracassaria.
Vera então imaginou um ardil. Disse a Rubem que o dinheiro já estava liberado, mas dependia de meras providências burocráticas. Assim, ela e outros amigos iriam adiantar-lhe a importância necessária para a viagem, e ele, quando recebesse seu dinheiro, poderia devolvê-la.
Rubem agradeceu muito, mas como homem honrado e orgulhoso, não aceitava. Percebera a manobra amiga da escritora, agradeceu, recusou com elegância e polidez. Não era um necessitado, só queria que lhe devolvessem as economias que fizera, e com as quais cuidaria da própria saúde. Entendia a solidariedade de Vera e seus amigos, mas era um homem soberbo.
Quando percebeu que não havia outro jeito, tratou de se preparar para o pior. Com o dinheiro que reunira, de seus salários na televisão, Rubem foi a São Paulo, onde funcionava o único crematório no Brasil, indagou pelo preço, preencheu o cheque. E quando lhe perguntaram onde se encontrava o corpo, apontou o próprio peito, e disse que seriam informados na hora certa, mas descontassem o cheque logo. Voltou para o Rio, reuniu os amigos em seu apartamento, dois dias antes da morte, e falaram de tudo, dos ausentes, das mulheres amadas, daquele verão, com seu sol e suas chuvas.
Conheci Rubem em 1956, em Belo Horizonte, quando ele esteve na redação do Diário de Minas, para ver o jornalista Hermenegildo Chaves, de quem havia sido companheiro no Diário da Tarde no início dos anos 30. Rubem tinha então 43 anos e estava no auge de sua carreira. Sempre que eu ia ao Rio, eu o visitava e, enquanto trabalhava com Chaves – que tinha o apelido de Monzeca – era portador de cachaça e requeijão de Montes Claros que ele enviava ao amigo.
Ao longo dos anos, sempre que nos encontrávamos, ele era muito amável e conversávamos invariavelmente sobre Minas e os mineiros.
Lembro-me de sua irritação quando descobriu que um sósia visitava escolas do Rio e se apresentava com seu nome, sendo homenageado pelas professoras e pelos pequenos alunos. Vociferava contra o canalha, por enganar as crianças e as professoras ingênuas. Chegou mesmo a escrever uma crônica, denunciando que havia no Rio um sujeito que tinha o péssimo hábito de se passar por Rubem Braga.
Não houve, em meu modesto juízo, quem melhor escrevesse em nossa língua portuguesa, nos dois lados do oceano. Seu texto fluía como as águas limpas de um riacho na montanha, contornando suavemente as rochas: sua profundidade se revelava, sem pudores e sem disfarces, na superfície. Era, embora muitos assim não o vissem, severo crítico da sociedade, já em seu tempo hipócrita e egoísta - embora muito menos do que hoje.
Certo marido, alertado por delator anônimo, surpreendeu a mulher em companhia do amante – e matou os dois. No dia seguinte, a sua crônica se endereçou ao canalha responsável pela tragédia, chamando-lhe hiena, e o cumprimentando pelo provável prazer diante dos mortos, dos filhos órfãos, das famílias atingidas.
Poucos conseguiram mostrar a patologia do regime militar com a precisão de Rubem, ao compará-lo, em crônica, a “uma porca mal capada”. Os que conhecem o meio rural sabem que raramente a porca castrada com imperícia consegue sobreviver: sobre a ferida as moscas pousam suas larvas, a infecção se torna invencível e o animal agoniza lentamente – a menos que alguém o sacrifique.
Vai, aqui, modesta sugestão aos responsáveis pelo ensino de nossa língua: adotem os textos do velho Braga no ensino fundamental. Não há, neles, nada de politicamente incorreto, posto que são, e declaradamente, subversivos contra a ordem do ódio, as regras do ressentimento, o domínio do dinheiro.
Aconselho, como obrigatório, talvez o mais sério de seus textos, em que, aparentemente sem assunto, narra tenaz acompanhamento do cronista a fugaz borboleta amarela nas ruas centrais do Rio: alegre concessão da vida a si mesma, cumplicidade do homem e do inseto, partilhando a alegria de estarem vivos, sem destinos, sob o sol e o azul.
Rubem foi um dos maiores nomes da literatura brasileira. Há quem o compare a Machado de Assis. Ao autor de Dom Casmurro - salvo em dois ou três contos, nos quais a ironia ainda era mais forte do que a compaixão – faltava solidariedade para com o sofrimento e não havia a alegria com a felicidade dos outros.
Foram esses dois sentimentos que marcaram todos os textos de Rubem Braga.