TV tem que ficar fora da Justiça
O Conversa Afiada reproduz artigo de Pedro Serrano, professor da PUC e articulista da Carta Capital:
O televisionamento dos nossos julgamentos
O direito e o sistema de justiça no Brasil sofrem intensas predações internas e externas. Das externas a que mais preocupa é o da mídia, em especial nos casos penais. Para que uma sociedade democrática e de direito contemporânea sobreviva como tal é relevantíssimo que os subsistemas comunicativos convivam entre si com base em relações de racionalidade transversal, ou seja, em essência a lógica de um não pode superar a do outro dentro da esfera de operação desse outro.
Assim, em um julgamento de um tribunal deve imperar a lógica do lícito/ilícito própria do direito e não a lógica do notícia/não notícia do subsistema de comunicação social ou do poder/não poder da política.
É esta manutenção da autonomia sintática dos subsistemas comunicativos dentro do grande sistema comunicativo que é a sociedade democrática que garante a pluralidade, tolerância e racionalidade conformadoras do Estado Democrático de Direito numa sociedade hiper-complexa como a nossa.
A ação midiática promove emoções, nem sempre boas conselheiras do juízo criminal que deve sempre se pautar por parâmetros racionais e certos valores que estabelecem o distanciamento afetivo e ideológico do julgador ao julgar a causa. O processo não é apenas garantia formal, mas direito material, exigindo a obtenção de um modo racional e equilibrado de formação da decisão. Onde há julgamento não deve haver linchamento, são conceitos totalmente contraditórios entre si.
Ao ser noticiada do cometimento de um crime a sociedade se solidariza com a vítima ou mesmo se sente vítima daquela conduta. Natural e razoável que seja assim.
O que não é adequado é que este sentimento de ser vítima invada o espírito de quem julga um processo. O julgador não pode ser vítima da conduta, dele se exige distância das emoções que cercam o ocorrido como requisito essencial para que sua decisão seja racional e justa.
Este papel do julgador distante e racional foi uma imensa conquista humana. A superação dos linchamentos e dos juízos populares no âmbito criminal por formas racionais e legais de julgamento foi uma imensa conquista civilizatória que marca nossa história moderna.
Com os julgamentos do caso do “mensalão” e do homicídio de Mércia Nakashima sendo televisionados inauguramos um período de sério risco de retrocesso nesta conquista hoje mínima da sociedade civilizada.
Televisionar ao vivo um julgamento penal é trazê-lo ao patamar de um linchamento contemporâneo. É constranger juízes e jurados a que sigam os impulsos primitivos da turba sob pena de sofrerem constrangimentos inaceitáveis à proteção que faz jus o julgador no exercício de sua função. O que se protege aí não é a pessoa do julgador mas um sistema civilizado de valores.
Vide o que sofreu o ministro Lewandowski por ter ousado divergir em alguns aspectos do voto do ministro relator do caso do “mensalão”. Foi achincalhado por nossa mídia marrom sem qualquer respeito a seu papel de julgador.
Uma sociedade democrática que exige de seus juízes que sejam heróis para julgarem segundo o que lhes parece ser os ditames de nossa ordem jurídica não é, de fato, uma sociedade democrática. Agora transmite-se por filmagens ao vivo as cenas do julgamento do homicídio de Mércia Nakashima, o que levará certamente à condenação do réu.
Talvez a referida condenação seja justa. O problema é que não se dará como resultado do que consta do processo, como resultado racional do processo e da investigação que o antecedeu. Será um ato de manifestação do ódio e de afetos próprios do linchamento.
E se o julgador ousar divergir deste sentimento público se transformará em réu da opinião publica ou publicada. O juiz e os jurados terão sua vida perturbada por xingamentos em restaurantes, neles seu bife será cuspido pelo garçom e coisas do gênero.
Tornar-se-á, ao menos por um tempo, um pária. É o que se cobra do julgador que ousar divergir do senso comum em razão de provas ou evidências que constem eventualmente do processo.
O direito fundamental do réu a contar com um juízo isento vai para o ralo. O processo passa a se assemelhar aos processos stanilistas, onde se entrava na sessão de julgamento sabendo-se de antemão o resultado.
Se esta gama de problemas já ocorria como consequência do normal acompanhamento pela mídia dos julgamentos, problema dificílimo de resolver em nossas democracias contemporâneas, televisionar ao vivo os julgamentos penais só agrava sobremaneira o problema ao invés de resolvê-lo.
Transformar os ambientes racionalmente controlados dos julgamentos criminais em espetáculo é um imenso equívoco. A título de uma transparência de fato inexistente, pois os documentos do processo nunca são televisionados, pois seria “muito chato” e de pouca audiência fazê-lo, joga-se no ralo conquistas civilizatórias de séculos de reflexões, revoluções e disputas.
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E "G de Globo é G de Golpe ".