Supremo não pode originar a própria competência
Amigo navegante, respeitado jurista, envia este artigo:
Por Rafael Tomaz de Oliveira
O Supremo Tribunal Federal voltou a enfrentar nesta semana o MS 32.033 proposto pelo senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), em face das mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Pretende o impetrante paralisar a tramitação do processo legislativo do PL 4.470/2012 (que, no Senado, passou a ser referido como PLC 14/2013). A questão é conhecida: tal Projeto de Lei pretende alterar as regras de distribuição do fundo partidário bem como do chamado direito de antena, que cuida da distribuição do tempo de TV conferido a cada partido).
Argumenta-se que, no modo como pretende dispor da questão em relação aos novos partidos políticos, tal projeto esvaziaria as garantias e direitos constitucionais ligados ao pluripartidarismo, do pluralismo político e da liberdade partidária. Afirma-se, ainda, que, em face da forma como dispõe a questão dos partidos novos, o projeto criaria uma violação ao direito de igualdade de chances, uma vez que, em uma mesma legislatura, estaria a se admitir um tratamento desigualitário entre partidos. Tais situações ofenderiam o núcleo de cláusulas pétreas do artigo 60, parágrafo 4o, inciso IV, da Constituição.
A eleição da via do mandado de segurança se pautou em jurisprudência da corte que começou a ser formada ainda sob a égide da Constituição de 1967/1969, no MS 20.257, sendo que, tal entendimento, foi capitaneado pelo ex-ministro Moreira Alves. Posteriormente, a jurisprudência do Supremo se consolidou no sentido de tal entendimento, firmando-se no sentido de que a via do writ era adequada para enfrentar Projetos de Emendas à Constituição, bem como Projetos de Lei, que sejam frontalmente contrários às cláusulas pétreas (cito, apenas para corroborar a afirmação, os Mandados de Segurança 24.642/2004 e 24.645/2003). Em nenhum desses casos, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o mérito do pedido. Apenas se afirmou a possibilidade de proposição do Mandado de Segurança em tais casos, atribuindo a legitimidade ativa de tal impetração para qualquer parlamentar.
A hipótese configura, na espécie, instrumento de controle prévio jurisdicional de constitucionalidade. De se ressaltar que, a nossa Constituição reserva o controle jurisdicional para os casos repressivos ou sucessivos, quando a lei já existe formalmente. Posterior ao desencadeamento do processo legislativo.
O caso desperta minha atenção porque, atualmente, estou envolvido com uma pesquisa que procura enfrentar aquilo que Erich Rothacker chamava de “migração de estilos culturais”. Cuida-se do seguinte problema: como é possível que determinados “tesouros culturais” que são concebidos por povos específicos com estilos biológicos específicos, desprender-se desse momento de formação originária e se manifestarem em outros âmbitos culturais.
Um desses “tesouros da cultura” apontado por Rothacker como possuidor de uma capacidade migratória esplêndida seria o direito romano[1]. De fato, é fascinante pensar que o direito romano está na base de formação tanto do common Law quanto do estilo jurídico romano-canônico e essa “influência” tenha produzido resultados tão diferentes em cada uma dessas experiências culturais. Com a expansão da cultura europeia e a descoberta do “novo mundo” (admitindo aqui a ambiguidade que tal termo necessariamente invoca), esse fluxo migratório intensificou-se, criando modelos jurídicos que apresentam, em algum sentido, uma grande novidade.
A configuração de um sistema de controle de constitucionalidade é um terreno fértil para uma pesquisa como essa. Vejamos: no nosso caso, introduzimos aqui um sistema difuso, de raízes estadunidenses, e, ao mesmo tempo, um modelo concentrado, de estilo europeu. É verdade que não estamos sozinhos na recepção compartilhada desses dois “tesouros da cultura”, para usar a linguagem de Rothacker. Portugal também estabelece um modelo de controle de constitucionalidade que comunga os dois modelos: o americano e o europeu.
Não me parece que a adoção dos dois sistemas faça com que nosso modelo/sistema de controle de constitucionalidade seja melhor do que outros, mais puros do ponto de vista sistemático. Definitivamente, temos entre nós um modelo diferente.
Os problemas da migração cultural vive a assombrar o nosso constitucionalismo. No caso do controle difuso, por exemplo, a ausência de um sistema de vinculação dos precedentes exigiu que nosso constituinte criasse o mecanismo da remessa/intervenção do Senado (reproduzido na Constituição atual no artigo 52, inciso X, que se apresenta também na ordem do dia, nos termos já trabalhados aqui neste mesmo Diário de Classe).
No caso específico do problema retratado linhas acima, estamos novamente diante de um impasse desse tipo: afinal, é possível ou não afirmarmos, entre nós, com base no modelo constitucional vigente, admitirmos um mecanismo de controle preventivo de ordem jurisdicional?
Ao contrário da manifestação do ministro Joaquim Barbosa na sessão da última quinta-feira (13/6), penso que essa discussão não é, por assim dizer, “bizantina”. Trata-se de uma questão fulcral para o direito constitucional brasileiro e, ao mesmo tempo, para afirmarmos o tipo de interpretação constitucional que queremos ter.
Nosso caso, é substancialmente diferente da situação de outros sistemas políticos constitucionais. Em Portugal, por exemplo, a própria Constituição de 1976 consagrou a possibilidade de um controle preventivo abstrato de alguns atos normativos, cuja competência para a fiscalização é atribuída ao Tribunal Constitucional.[2]
É importante anotar que Canotilho estabelece uma série de diferenças entre o controle preventivo e o controle sucessivo exercido pelo Tribunal Constitucional. Dentre as principais, podemos anotar a limitação da fiscalização preventiva a determinados atos normativos e, por outro lado, o fato de que o controle efetuado não tem o condão de paralisar completamente o trâmite do processo legislativo. Nos termos encaminhados pelo mestre: “a decisão do tribunal não pode consistir na anulação de normas, mas sim numa pronúncia sobre a inconstitucionalidade de decretos (normas imperfeitas) conducente, em termos mediatos, a uma proposta de veto ou de reabertura do processo legislativo”[3].
Entre nós, não existe previsão constitucional que autorize, da forma como existe em Portugal, afirmar a existência de um controle jurisdicional preventivo. O Supremo admite uma tal possibilidade a partir de uma construção de sua jurisprudência. É possível observar, a cada sessão do STF, que, em algum casos, a jurisprudência da casa parece ter cada vez mais importância do que a própria Constituição. Cria-se um magma fragmentado de decisões que são frequentemente esgrimidas pelos ministros em seus votos. Mas, caberia perguntar, em qual lugar a Constituição autoriza um tal mecanismo? O controle de Emendas Constitucionais que sejam contrárias às cláusulas pétreas não podem ser objeto de controle sucessivo? Qual o motivo, então, de, a partir da previsão das cláusulas pétreas, inferir-se a possibilidade de uma competência do Supremo Tribunal que não foi expressamente atribuída a esta corte pelo constituinte? E o mais instigante é que o leading case sempre chamado a assistir a uma tal tese foi exarado tendo como parâmetro normativo outra Constituição, que não a vigente.
Todos os ministros se esforçam ao máximo para mostrar que a sua interpretação não viola ou que é a mais correta em relação à jurisprudência da corte. Mas, e a Constituição, o que ela diz sobre o assunto? Estamos cada vez mais imersos no processo nomeado por José Luis Bolzan de Morais como “jurisprudencialização da Constituição".[4]
E há outro problema nessa questão: no modo como se encaminhava a votação do MS nos votos que entenderam ser cabível a interrupção da deliberação parlamentar, a decisão da corte representaria um efetivo gravame ao processo legislativo, muito diferente da situação visualizada no direito português, no interior do qual a intervenção da corte pode levar, no máximo, a uma proposta de veto ou a reabertura do processo legislativo.
O texto da Constituição deve ter um papel importante na formação da interpretação da Constituição.[5] Não é possível que admitamos que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja a “fonte” da criação de uma competência constitucional da própria corte. No mais, em se admitindo uma tal possibilidade, ainda que seja em casos excepcionais, por que o controle sucessivo? Poderíamos fazer tudo pela via do controle preventivo.
[1] ROTHACKER, Erich. Problemas de antropologia cultural. México: Fondo de Cultura Económica, 1957, passim.
[2] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, pp. 1025 e segs.
[3] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, pp. 1026, grifos do original.
[4] Cf. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 49.
[5] Essa questão já foi explorada em outro texto: Cf. STRECK, Lenio Luiz; BARRETTO, Vicente de Paulo; TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um terceiro turno da constituinte. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), Vol. I, n. 2, julho-dezembro 2009, São Leopoldo, Unisinos, 2009.
Rafael Tomaz de Oliveira é mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
Recomenda-se também a leitura de "STF derrota Gilmar. STF não manda no Legislativo".