Como converter 60 milhões de consumidores em protagonistas
O Conversa Afiada reproduz editorial de Saul Leblon, da Carta Maior:
Eleições 2014: o Brasil não é um power-point
A disputa de 2014 coincide com uma transição de ciclo de desenvolvimento no Brasil. Nisso há consenso entre o mercadismo e a visão progressista. Ambos concordam em que o país vive o esgotamento de uma dinâmica econômica. Há razoável convergência, ainda, em relação ao motor que deve puxar o novo período: o investimento produtivo; os grandes projetos de infraestrutura. Termina o espaço dos consensos.
O conservadorismo avalia que o legado recente é incompatível com o futuro desejado. Para nascer o ‘novo’ é preciso destruir o ‘velho’. Parece schumpeteriano, mas é udenismo mesmo. Em sua nova roupagem: a supremacia financeira capaz de purgar qualquer vestígio de interesse nacional, público e social no manejo da economia.
Fortemente ancorada na ampliação do mercado de massa, a economia avançou nos últimos anos apoiada em ingredientes daquilo que a emissão conservadora denomina ‘Custo Brasil’.
A saber,
- o salário mínimo teve una elevação do poder de compra de 70%. Aumento real, acima da inflação: quem comprava 10 litros de leite por mês passou a comprar 17. Entre outros, os 14 milhões de aposentados e pensionistas.
- cerca de 17 milhões de vagas foram abertas no mercado de trabalho, regidas pela regulação trabalhistas da era Vargas, que FHC prometera abduzir: carteira assinada; férias; 13º; reajuste anual.
- políticas sociais destinadas a mitigar a fome e a miséria adquiriram forte abrangência: atingem cerca de 14 milhões de lares atualmente. Mais de 55 milhões de pessoas.
Da área externa veio um período de fastígio nos preços das commodities.
Desperdiçado pelo país’, dizem os críticos. Em termos.
Omite-se um cinturão de segurança de US$ 370 bilhões em reservas internacionais acumuladas no período: quase oito vezes o legado do PSDB. Sem elas o país não teria atravessado a crise mundial com geração de empregos e ganhos trimestrais ininterruptos na renda das famílias.
O impasse orçamentário nos EUA, associado à iminente redução da liquidez pelo FED, faria do Brasil agora presa fácil da volatilidade internacional. A avaliação divergente, do ponto de vista conservador, implica que esse conjunto seja corroído para reduzir custos empresariais, ademais de aliviar o gasto fiscal do Estado.
O desmonte, supostamente, ‘baratearia o investimento privado’, com um salto de negócios para um novo ciclo de expansão.
Até poderia ser assim. Se o Brasil fosse um power point da lógica neoliberal. Um país não cabe em simulações desprovidas de conteúdo histórico. O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de renda. Os novos protagonistas formam hoje a maioria da sociedade.
‘Lula fez uma política irresponsável de crescimento baseada na consumo’.
Em termos.
Lula criou um novo personagem histórico. Sua presença dificulta sobremaneira rodar o software conservador no metabolismo econômico brasileiro.
‘Lula surfou no câmbio valorizado e não aproveitou a ‘janela’ da liquidez internacional para fazer ajustes estratégicos’.
Em termos.
Lula trouxe 60 milhões de novos consumidores para a fila do caixa. Mudou as referências estratégicas da produção, da demanda e da política nacional. O conservadorismo quer devolver a pasta de dente ao tubo. A assepsia da equação brasileira requer um cavalo de pau dificilmente realizável em ambiente de liberdade.
Lula esburacou o chão político do projeto conservador. Entende-se a busca ansiosa por uma terceira via. ‘Precisa-se’: o conservadorismo seleciona candidatos para dar um rosto novo ao conteúdo velho. O espinho na garganta das elites não deixa de cutucar também o comodismo progressista.
A nova coerência macroeconômica terá que ser buscada na correlação de forças redesenhada pelas grandes multidões que invadiram a economia e agora cobram vaga na cidadania plena. A escolha é fazê-lo em negociação permanente com elas. Ou contra elas. Correndo o risco de ser atropelado por elas. Há requisitos para caminhar junto.
Um deles: uma democracia que não se resuma à visitação esporádica às urnas, que torna a governabilidade refém da coação parlamentar conservadora.Outro, uma regulação das comunicações que amplie o espaço ecumênico da opinião e liberte o discernimento social da manipulação conservadora.
Esse que exacerba as incertezas, paralisa a economia, interdita o debate e veta as soluções para o desenvolvimento. Erra quem imaginar que vencer em 2014 é ter 50% mais um dos votos contra ‘Marina, toda pura’ É preciso mais que isso para ordenar o passo seguinte do país.
A recuperação da economia norte-americana inverteu o sinal externo dos fluxos de capitais. Adicionou um complicador extra à mecânica do crescimento na periferia do mundo. O poder de barganha dos investidores e o risco das fugas de capitais pressionam por juros ‘atraentes’.
O conjunto joga óleo na pista de uma infraestrutura que derrapa na carência de investimentos. Cada urgência tem um custo e nem sempre – ou melhor, quase nunca – ele é neutro em relação a outra. Faz parte do jogo: o desequilíbrio é intrínseco à luta pelo desenvolvimento.
Quem decide o que é coerente na macroeconomia de uma nação é a correlação de forças de cada época. Não é algo que se resolva no power point.A exemplo das ‘vantagens comparativas’ (que o conservadorismo credita a um dom divino das nações), a correlação de forças é construída nas lutas históricas de cada povo. E em cada época.
A industrialização brasileira, por exemplo. Veio distinguir o cafezal oligárquico com uma preciosa singularidade histórica: uma base industrial completa. Fato raro entre as nações emergentes, esse desassombro de Vargas e JK redundaria no ABC paulista e na eleição de um presidente operário, em 2002.
Lula não teria existido sem a campanha do ‘petróleo é nosso’, a criação da siderurgia e a fundação dos bancos estatais. O conservadorismo arremete diuturnamente, mas a flecha do tempo não se quebrou: ele seria reeleito em 2006; faria a sucessora em 2010; flexiona os músculos para 2014.
Em 2005 quando tentaram derrubá-lo, operários liderados pela CUT convocaram mobilizações em defesa da democracia. O Brasil passou a ter aquilo que o patrono da industrialização não teve quando se matou em 54. Nos palanques de 2002, Lula dizia com razão: ‘Eu sou uma cfriaçao coletiva do povo brasileiro’.
Um dos desafios do próximo ciclo de desenvolvimento é resgatar o celeiro fabril que gerou tudo isso e está atrofiado por duas décadas de valorização cambial.
Hoje o Brasil importa quase 25% das manufaturas que consome. O preço baixo ajuda no controle da inflação, mas vaza empregos para a China ; enfraquece os sindicatos desidrata os novos contingentes de ‘lulas’ espalhados pelo país.
Não por acaso, segundo o IPEA, no Brasil, hoje, há mais desempregados qualificados do que não qualificados. Estamos queimando divisas para abrir vagas nas linhas de montagem asiáticas. O déficit comercial da indústria este ano alcançará o equivalente a 20% das reservas cambiais.
Temos agora o mercado de massa preconizado por Celso Furtado. Quem vai atendê-lo: a industrialização legada por Getúlio ou os clusters asiáticos? O conservadorismo acha que tanto faz.
Da Casa das Garças ecoa a pigarra ancestral da oligarquia a prescrever uma purga de eficiência com derrubada geral de tarifas de importação. Salve-se quem puder: o desemprego correspondente é ‘funcional’, segundo a lógica do ‘Custo Brasil’. Passado e futuro convergem para as urnas de 2014.
Como colar as trincas do país para que a soma das partes seja maior que o todo, resultando em um novo ciclo de desenvolvimento? Criando um fato político. Qual?
Certamente a vitória em 2014. Mas não qualquer vitória. Não a vitória de um programa de power point para um país de photoshop. Mas uma consagradora vitória do discernimento histórico da sociedade brasileira.
Uma eleição ordenada pela mobilização, não apenas pela publicidade. Que promova a mutação dos 60 milhões de novos consumidores em protagonistas políticos de uma repactuação de projeto de nação para o século 21. Ancorado em mais democracia. E nos instrumentos que forem necessários para sustentá-la.