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A triste sina de um empreiteiro

A eternidade pode ser uma m...
publicado 15/11/2014
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O Conversa Afiada reproduz notável texto de Marcus Veras, talvez inspirado pelo desejo de não deixar pedra sobre pedra:



A triste sina do nobre empreiteiro

Imagine a cena: madrugada de quinta para sexta-feira no centro do Rio. Acostumado com a eternidade, o busto do ilustríssimo Antonio Jannuzzi espera atravessar a noite em tranquila vigília, como sempre ocorre. É a melhor hora do dia, quer dizer, da noite, longe do ronco contínuo do tráfego alucinado da Avenida Rio  Branco. Principalmente na esquina com a rua Sete de Setembro, onde está enraizado para ser molhado pela chuva, cagado pelos pombos, ignorado pela multidão, ossos do ofício.


O busto suspira ao lembrar-se como chegou ali, italiano que deu com os costados em Montevidéu, e que, insatisfeito, migrou para o Rio de Janeiro em 1874. Século 19! Por aqui se arrumou: começou como mestre de obras, depois empreiteiro, criou sua própria firma. E foi com ela que rasgou a antiga Avenida Central, hoje Rio Branco, uma obra monumental que lhe valeu outras em Niterói, Valença e Petrópolis. Então, tinha ou não tinha que ter um busto exatamente aqui?


Mas voltemos à madrugada: está lá seu Jannuzzi numa boa, curtindo o vento tépido que vem da Praça Mauá neste início de verão, quando surge das sombras uma visão infernal.  Completamente alucinado, um morador de rua, depois de passar o dia cheirando thiner, se encaminha em sua direção. O passo é trôpego, mas Jannuzzi bem sabe qual é a direção que o desgraçado busca. Ao chegar diante do busto, que está virado no sentido do Aterro, decarrega sua ira.


– Você, filho de um condenado, é a desgraça desse lugar! O mundo passa, passa tudo e tu fica aí! Eu vejo, eu vejo, eu vejo tudo se acabar… Só você fica!  Eu vou, eu vou indo e você fica! Olhando para mim, desgraçado!


Não é a primeira vez que aquele homem vem rugir impropérios diante de Jannuzzi. Desde que se instalou no Largo da Carioca ele ronda a esquina, rosnando maldições, imprecando e chamando os demônios. Desta vez, tem um saco plástico na mão esquerda cujo aspecto é nada inspirador.


– Não quero que me olhe mais, ouviu? Você não vai me olhar mais!


Em seguida abre o saco e joga suas fezes, recolhidas com esmero, no rosto de Jannuzzi, que tenta fechar as narizas de bronze. Por fim,  o desembestado cumpre a promessa – sobe no busto e tolda sua visão tapando o rosto com o saco plástico. E é assim que a manhã de sexta-feira encontra o busto do ilustríssimo Antonio Jannuzzi, que, como eu disse lá atrás, está ali enraizado para ser ignorado pela multidão. Por isso mesmo, até as cinco e meia da tarde, quando passei por lá, ainda estava o nobre empreiteiro em petição de miséria, versão tropicalista de um Magritte decadente. A eternidade, dependendo da esquina, pode ser uma merda.

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