“A nova utopia da esquerda virá dos negros e das negras”
Via Mídia 4P - Participei de uma reunião neste sábado, dia 4, em que um companheiro dirigente de um movimento campesino, ao analisar a conjuntura, apontou o vazio de construção de novos movimentos de massa no Brasil, tendo sido a década de 1980 o último período de surgimento de iniciativas de mobilização de esquerda potentes. De lá para cá, analisou o companheiro, todos os movimentos surgidos foram desdobramentos desses que são matrizes.
O companheiro, em uma abordagem muito importante para a reflexão sobre os rumos da esquerda, também expôs suas angústias em relação à criação de novas sínteses que dêem conta de ganhar as mentes e corações dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Para mim, responde às angústias do companheiro dirigente do movimento popular uma frase que ouvi em dezembro de 2018 da boca da jornalista paulista, ex-repórter especial da Folha de S. Paulo e fundadora do coletivo Jornalistas Livres Laura Capriglione.
Disse Laura, em um encontro promovido pelos queridos amigos Georgia Pinheiro e Paulo Henrique Amorim (saudoso) com companheiros da minha organização, o Coletivo de Entidades Negras (CEN), àquela época em vias de colocar no ar o portal Mídia 4P: “A nova utopia da esquerda virá dos negros e das negras”.
Essa frase me marcou na época, pois apontava um caminho que sempre defendemos, mas com o agravante de estarmos em um momento pós-vitória do então candidato à Presidência da República e atualmente (e infelizmente) chefe do Palácio do Planalto, Jair Boslonaro.
Era um momento de questionamento à esquerda brasileira, aos seus rumos e ao seu afastamento das bases, das periferias, das favelas, da vida do povo sofrido, do povo negro. E aquela frase apontava um caminho, o caminho que o movimento negro brasileiro defende – com a pauta racial sendo a centralidade do exercício do poder – há pelo menos 15 anos.
Hoje, consigo completar a frase da Laura acrescendo que a nova utopia da esquerda brasileira virá, sim, dos pretos. Virá dos pretos que lutam de forma organizada, mas principal e essencialmente dos que não se organizam nos modelos tradicionais de militância, porém são afetados pelas desigualdades e pelos duros efeitos colaterais do neoliberalismo voraz.
Nós, esquerda, precisaremos enfrentar de frente esse debate de colocação do antirracismo no seu devido lugar de destaque e protagonismo, sob pena de não conseguirmos construir um novo momento no campo político democrático e popular. Pior: sob pena de não construirmos um projeto que seja capaz de sintetizar, encantar e mobilizar o povo para lutar em defesa dos seus direitos e do projeto de país no qual acreditamos.
A luta racial não poderá ser lateral, nem tratada como identitária ou secundária, se é o elemento racial o elemento central da organização da miséria no Brasil. O sistema capitalista no Brasil tem características próprias, não estruturando-se prioritariamente sob o elemento de classe. Mas, na prática, estabelecendo as categorias de classe a partir das categorias de raça e, centralmente, sob a escravidão e os seus legados devastadores – afinal, estamos falando de um sistema de subjugação de africanos escravizados que durou 388 anos e que foi extinto, pelo menos oficialmente, há apenas 132.
Desde então, somos nós negros e negras que estamos nas filas do Sistema Único de Saúde (SUS) e da regulação esperando para morrer (embora a defesa do SUS seja inegociável), no Instituto Médico Legal (IML), nos necrotérios, na situação de desassistência social, nas favelas, no cárcere e nas estatísticas de violência policial e de feminicidio.
Somos nós, negros e negras, que estamos na lista dos que pagam mais impostos em relação às elites, na lista dos que mais morrem devido ao Coronavírus (a cada cinco pessoas mortas, quatro são negras), na falta de acesso à terra e à moradia… Somos nós que estamos nas ruas, morando sob o sereno do abandono, enquanto Bia Dória’s e Val Marchiori’s zombam da nossa miséra extrema, expondo as feridas das nossas relações sociorraciais.
Portanto, cabe a nós assumirmos o papel de vanguarda nesse apontamento dos novos caminhos utópicos para a esquerda, para o Partido dos Trabalhadores, sua maior representação e maior instrumento de luta do povo pobre na América Latina, mas entendendo também que a categoria de trabalhadores não dá conta de agrupar, sozinha, todas as angústias. Os desalentados (aqueles que desistiram de procurar emprego), os informais e os explorados pela uberização da sociedade formam um grupo amplo, o grupo dos subalternizados pela sociedade.
E qual a cor deles e delas? Não preciso responder, pois vocês sabem e já responderam no seu íntimo mais profundo.
Agora, é indispensável que entendamos os recados das ruas estadunidenses, após o homicídio brutal do trabalhador negro George Floyd por um policial branco, e também das ruas brasileiras que se mobilizaram na esteira dos distúrbios sociais ocorridos nos EUA naquela sequência de protestos já históricos.
Urge entender que não existe democracia e antifascismo sem antirracismo. E ter certeza de que não existirá projeto libertador e emancipatorio sem luta por igualdade racial também é indispensável.
Isso passa por enfrentar o pacto narcísico dos brancos e por nos infurnarmos, mesmo contra a vontade das elites, nos espaços de poder. E está relacionado diretamente com a nossa capacidade política de defender, de fato, um projeto de nação social e racialmente justo.
Aí, a esquerda brasileira terá chegado à concretização do que diz ter como crença. Até agora, tudo é só uma mera utopia. Mas Oxalá essa seja uma utopia antirracista.