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A beleza da "Juventude" e a corja do 17 de abril

"O futuro é uma grande oportunidade de liberdade e a liberdade é uma grande oportunidade da juventude"
publicado 07/06/2016
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juventude

Caine rege uma orquestra imaginária de vacas!

O Conversa Afiada reproduz do site "Uma coisa e outra" inspirada crítica de Léa Maria ao filme "Youth" de Sorrentino:


Beleza na tela e a imundície em Brasília

Filme A  Juventude

Léa Maria Aarão Reis*

Enganam-se os que pensam que, neste momento sombrio do Brasil, viver e respirar unicamente os desdobramentos da política doente de Brasília – e como corolário, a resistência ao golpe – é fato imperativo absoluto. Janelas de cultura e da arte, com ar fresco e saudável, podem fazer, mais do que nunca, a vida suportável para a nossa renitência.

Farta do deboche que os golpistas fizeram com o meu voto, e enojada com o que ocorre no congresso, nos tribunais, no MP e na velha mídia; cansada de ver o grotesco nos homens dos ternos com cheiro de mofo e nas mulheres  travestidas de peruas,  - “aquela corja que se exibiu para o Brasil e para o mundo no dia 17 de abril” como diz  Emir Sader. E também no Senado.

Farta de ver os esgares ensaiados, sorrisos irônicos debochados e cabelos pintados acintosos ou implantados em calvícies irreversíveis; cochichos protegidos pelas mãos que escondem de nós, cidadãos eleitores, a verdade do que realmente dizem e pensam (e não querem que saibamos).

Cansada da agressão das gravatas caras e horrendas; as roupas ensebadas retiradas dos armários onde aguardaram, com naftalina, um novo uso, desde 1964; e dos olhares fugidios de golpistas, das gomalinas dos “traidores e os desleais” denunciados pela presidente eleita Dilma Rousseff.

Farta das imagens da desavergonhada máfia nacional oligárquica - arrogante, pretensiosa e inculta -, que tomou de assalto o poder; e  intoxicada pela enxurrada diária do noticiário vendido que não cessa de surpreender e deprimir através de “artes e manhas” malévolas; por todo o lixo que estamos constrangidos a consumir no atual ambiente de cupidez e falta de vergonha, é com esforço libertarmo-nos do labirinto sinistro em que se transformou a vida política nacional e mergulhar na pura beleza da arte do cinema.

O filme do italiano Paolo Sorrentino, A Juventude (Youth), é um dos melhores que assistimos, no período de um ano. Uma reconciliação com a vida através da sua beleza.

Está há mais de um mês em cartaz nos cinemas do Rio e de São Paulo, e é outro sucesso do roteirista e diretor napolitano, autor de A grande beleza, com o qual ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2014, o Globo de Ouro de então, e o Bafta de melhor filme em língua estrangeira. Em ambos, o mesmo tema: a brevidade da vida e o exorcismo do medo da morte.

Sorrentino, 46 anos, é da nova geração européia que areja e renova o cinema. Há 20 anos abandonou seus estudos de Economia para fazer filmes. Dirigiu, aliás, um estranho e excelente filme, nos Estados Unidos, com Sean Penn como um roqueiro recluso que persegue um nazista depois da morte do pai, intitulado Aqui é o Meu Lugar, (2012), aqui exibido discretamente. David Byrne canta, nesse pequeno e belo filme com uma trilha musical impecável. Imperdível.

Discípulo de Fellini, com controle firme de uma linguagem extrovertida cinematográfica, e mestre da caricatura e da crítica, o italiano utiliza estruturas de narrativa semelhantes à do maior-de-todos, no seu La grande belezza e, agora, em A Juventude: diálogos curtos e ferinos –  no melhor estilo cortante da inteligência italiana - entrelaçados a clipes de imensa beleza plástica e povoados com personagens simbólicos na sua super- dimensão - tipos arrivistas, fúteis e ridículos da alta e média burguesia. A elegância das câmeras de Sorrentino continua suprema: elas vão e vêm em todas as direções.

 
Com este  Youth ele contrapõe à histeria das grandes festas e às manobras e intrigas da falsa beleza, do filme anterior, a placidez e despreocupação dos velhos ricos instalados na paz um pouco modorrenta dos privilegiados, mergulhados na água de piscinas medicinais e absolutamente silenciosas – e no esplendor da verdadeira beleza; a da natureza.

Fred Ballinger (o formidável ator britânico Michael Caine fazendo um personagem inspirado no célebre maestro Ricardo Muti, também napolitano como Sorrentino), Mick Boyle (grande ator americano Harvey Keitel, um pouco calcado nos cineastas Sidney Lumet e William Friedkin) e Brenda Morel (uma Jane Fonda irreconhecível, numa ponta forte, fazendo uma bruxa, uma ex-super estrela ressentida que vem atormentar o amigo), os três representam o mito dos artistas que passam. Em contraponto, a juventude de meia dúzia de personagens secundários se interpõe na reta final das existências desses ícones.

Fred, célebre diretor de orquestra e compositor aposentado não deseja voltar a pisar nos palcos após a morte da mulher. Mick, cineasta em crise criativa, tenta concluir um roteiro para o que seria seu último filme. E há Brenda (Fonda), que o abandona pelas séries de televisão que pagam mais que o cinema.

Além dos veteranos, aparecem Lena (Rachel Weisz), filha e ajudante de Fred, e Jimmy Tree (o brilhante ator Paul Dano), outro hóspede do hotel/spa, nos Alpes, no qual Fred e Mick passam as férias todos os anos. O cenário é idílico e, lá, o tempo parece congelado. No filme, ambientado no antigo sanatório para tuberculosos de Davos, na Suíça, no qual Thomas Mann escreveu sua obra-prima A Montanha Mágica, Sorrentino faz uma pequena menção a Maradona através de um personagem hospedado no mesmo local.

Uma das mais belas pequenas sequências do filme é a do velho maestro regendo, no silêncio profundo do ambiente, uma orquestra imaginária composta pelas vacas das imediações. Com sua particular visão estética do cinema, Sorrentino une, novamente, música e imagens, produz um magnífico balé visual e, a partir da velhice e da decadência, presta homenagem à juventude.

Para ele, o filme é "otimista e uma excelente oportunidade para exorcizar o medo da passagem do tempo, do envelhecimento, da morte física e mental.” Na entrevista coletiva após a exibição do filme para a imprensa ele comentou: "O futuro é uma grande oportunidade de liberdade e a liberdade é uma grande oportunidade da juventude.

Um dos recados do filme é este: a beleza da liberdade não é ser livre para fazer o que quiser, mas estar consciente reconhecendo a possibilidade de liberdade.

Lembra o que Flavio Dino, o governador do Maranhão disse, diante da violência do assalto ao poder político, no Brasil: a razão e a lucidez são instrumentos decisivos para derrotar o golpe parlamentar e recobrar a liberdade.

E, por que não?  A arte  e a beleza também, como estamos vendo nas ocupações dos jovens através de todo o país.

 
*Jornalista