A farsa do Estado mínimo e a indústria do encarceramento
O Conversa Afiada reproduz da Época artigo de Conrado Hübner Mendes, Doutor em Direito e professor da Universidade de São Paulo (USP):
Menos estado, mais prisão: a rota do milhão
Não existe Estado mínimo grátis. Estudiosos da segurança pública e da economia política do crime, em diversas partes do mundo, identificam que a retração de políticas de bem-estar gera expansionismo nas políticas de repressão: do minimalismo governamental ao maximalismo penal, o caminho de um ponto a outro não é acidente ou mera coincidência. Quanto menos dinheiro público de um lado, mais do outro. As variáveis e causalidades são mais complexas do que essa equação sugere, mas a síntese da correlação mostra-se universal. Falta-nos, portanto, um retrato fiel sobre o significado do Estado mínimo: o apelido do “Estado-guarda-noturno”, aquele vigia simpático que protege sua casa (em bairro nobre), na prática significa “Estado-penitenciária”. Sai caro para todo mundo.
O problema, claro, não é só de finanças públicas. O Brasil vive sob vertiginosa taxa de crescimento de sua população carcerária, que já ultrapassou os 700 mil, a terceira do mundo. Os presos sem condenação tangenciam os 300 mil. O déficit de vagas ultrapassa os 350 mil. Segundo dados oficiais, os mandados de prisão em aberto beiram os 600 mil. Se tudo der certo, o projeto brasileiro de encarceramento em massa ultrapassará 1 milhão de “beneficiários” no fim desta década ou começo da próxima.
Corremos sem freio na rota do milhão, pequena parcela do Produto Interno da Brutalidade Brasileira, nosso PIBB.
O problema, claro, não é só de números. A população carcerária brasileira é composta de maioria de homens jovens, negros, que não completaram o ensino fundamental. Essa maioria foi presa por crimes contra o patrimônio (37%) ou de tráfico de drogas (28%), típicos de pessoas de alta vulnerabilidade socioeconômica. Por homicídios, apenas 11%. A Constituição de 1988 proíbe tratamento desumano ou degradante e também as penas cruéis (Art. 5º), uma homenagem insólita às condições de insalubridade de nossas prisões.
O problema, claro, não é só de violação de direitos. O crime organizado aprendeu a lucrar com isso. Multiplica a violência nas ruas e nossa sensação de insegurança. Nos últimos cinco anos, por exemplo, o PCC aumentou em 700% seus integrantes fora do estado de São Paulo (de 3 mil para 20 mil). O sucesso empresarial do PCC está imbricado no sistema prisional (recomendo o recém-lançado livro A guerra — A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, escrito por Bruno P. Manso e Camila N. Dias). Uma forma de resumir a lei geral do encarceramento brasileiro seria esta: quanto mais prisão, mais crime organizado; quanto mais crime organizado, maior corrosão da política e da democracia. Como muitas leis sociológicas, são contraintuitivas, ignoram ideologias e desafiam o senso comum. A política pública falha em neutralizá-las. Os autores morais e intelectuais do massacre prisional brasileiro não habitam apenas os palácios de governo, as Assembleias e os quartéis, mas também os palácios de Justiça.
As ciências sociais e a sociedade civil organizada, por meio de seus diagnósticos e recomendações, têm contribuído na elucidação do tema (para citar algumas instituições: Conectas, Instituto Sou da Paz, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Igarapé, IBCCRIM, Pastoral Carcerária, Rede Justiça Criminal, IDDD). As publicações “16 medidas contra o encarceramento em massa” e “Segurança pública é a solução”, disponíveis na rede, oferecem bons critérios para avaliar os programas de presidenciáveis.
Curar a desinteligência penal brasileira é uma missão que não perde de nenhuma conquista civilizatória da qual possamos nos orgulhar, como as abolições da escravatura, da pena de morte ou da tortura. Numa democracia com alto grau de desigualdade e elites com baixo grau de compromisso público e educação política, a missão de candidatos à Presidência de hoje e de amanhã é enfrentar o debate sem recorrer à cartilha do populismo penal, repleta de promessas de balas de prata. Os programas que estão na mesa variam em conhecimento técnico, seriedade e profundidade. Alguns continuam a pensar a segurança pública como sinônimo de arma, polícia e prisão, numa política de “ganha quem tiver calibre mais grosso”. Outros não subestimaram sua inteligência. Resta ler antes de votar.