Aldo faz o elogio dos bandeirantes
O “bandeirismo” antecipou a “legitimidade brasileira”
O Conversa Afiada republica do Estadão artigo de Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa:
“Fernão Dias, Anhanguera,
Borba Gato,/ Vós fostes
os heróis das primeiras
marchas para o Oeste,/
Da conquista do agreste/,
E da grande planície
ensimesmada!”
Vinícius de Moraes/Tom Jobim, ‘O Planalto Deserto’
A onda “politicamente correta” e o revisionismo histórico contemporâneo escolheram o bandeirante como alvo preferencial, a pretexto de vingar injustiças pretéritas e julgar fatos e personagens do passado à luz de critérios, paradigmas e valores da atualidade. O Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, foi sucessivamente alcançado pela fúria de vândalos e houve desavisados que propuseram simplesmente a sua remoção do Parque do Ibirapuera.
O monumento, apelidado carinhosamente pelos paulistanos de “empurra, empurra”, é um colosso de 50 metros de cumprimento por 16 de altura, constituído de 240 blocos de granito de 50 toneladas cada um, símbolo da cidade de São Paulo e cartão-postal do Brasil. Brecheret, patriota ítalo-brasileiro, protagonista da Semana de Arte Moderna, dedicou mais de 30 anos de trabalho à obra, da vitória no concurso de maquetes, em 1920, até sua inauguração, em 1954.
O artista concebeu o monumento com a presença do português, do negro e do índio, unidos no esforço ingente de arrastar uma canoa, simbologia da nação miscigenada e reconhecimento da contribuição das três raças na formação do povo brasileiro e na construção do Brasil. Em cada lado do granito, os versos de Guilherme de Almeida e de Cassiano Ricardo exaltam os homenageados e enaltecem o papel que cumpriram na dilatação do território pátrio e na grandeza do País.
Jaime Cortesão, em magistral biografia de Raposo Tavares, credita o esboço do mapa atual do Brasil ao bandeirante e à sua Bandeira dos Limites – epopeia que percorreu 12 mil quilômetros durante três anos e incorporou territórios depois consolidados no Tratado de Madri. Ao se deparar com as façanhas do biografado, escreveu, entre a surpresa e o espanto: “Agora levanta-se a tampa de granito de um sepulcro, onde dormia um gigante”.
O bandeirante é o português e o índio mais o mameluco, de mãe índia, pai português e língua materna, isto é, o tupi. A bandeira não existiria sem a logística indígena, as suas canoas, suas roças, o conhecimento dos rios, e seus caminhos – os peabirus –, que ligavam São Vicente ao que hoje é o Rio Grande do Sul, ao Paraguai e ao Peru, quando não havia mapas que orientassem os aventureiros em suas jornadas.
Desconfiados e arredios, o índio em relação ao branco estrangeiro e o bandeirante nas suas disputas com os jesuítas e as autoridades de Lisboa, eles uniram seu destino na base comum do sentimento libertário e de objetivos determinados: o índio, a guerra às tribos inimigas; o português e o mameluco, a busca do ouro, o apresamento do índio inimigo, o combate ao jesuíta e ao espanhol.
A difamação do bandeirante é obra antiga, promovida pelos jesuítas espanhóis, vítimas preferenciais das arremetidas dos paulistas – o outro nome dos bandeirantes – contra as reduções de Guairá, Itatim e Tape, hoje terras do Paraná, de Mato Grosso do Sul e do Rio Grande do Sul.
A historiografia brasileira, destacadamente a de Capistrano de Abreu, não dispondo de outras fontes na época, abraçou os relatos do padre Ruiz de Montoya sobre a violência do bandeirante.
A vasta pesquisa de Jaime Cortesão questionou os relatos castelhanos e os atribuiu à acirrada disputa entre Portugal e Espanha pelo espaço colonial. A historiadora Anita Novinsky, em trabalho recente divulgado na Revista da USP, partindo de pistas do próprio Cortesão, oferece outra explicação: muitos dos bandeirantes eram cristãos-novos, perseguidos em Portugal e no Brasil pela Inquisição, dirigida pelos jesuítas. Logo, segundo Anita Novinsky, o confronto seria um acerto de contas entre vítimas e algozes do processo inquisitorial.
O Monumento às Bandeiras é mais que a expressão do trabalho e do talento de um grande artista, razões já suficientes para ser defendido e preservado. Ele ultrapassa essas virtudes ao perpetuar um momento sublime da gênese brasileira, do surgimento da sociedade mestiça, ousada, empreendedora, libertária e democrática para os padrões da época. Ofendê-lo e maltratá-lo é ferir o que temos de mais profundo e duradouro de nossa identidade de povo e de nação.
As vicissitudes do bandeirante e de sua existência, das violências que praticou e dos abusos que cometeu não devem acobertar o esquecimento da civilização e dos valores perenes que construiu.
Gilberto Freyre, no notável ensaio A propósito de paulistas, considera justo atribuir ao paulista antigo e ao “bandeirismo” a antecipação do sentimento de “legitimidade brasileira”, cultura, e quase nacionalidade, antes mesmo da rebelião dos pernambucanos contra a ocupação holandesa. E adverte que, “sem essa identificação, as regiões e as províncias são apenas paisagens, dóceis a qualquer plástica que o adventício ou o conquistador lhes queira dar”.
Certo escritor europeu conta que, passeando uma vez sua solidão pelas ruas de Paris, compreendeu que não conhecia ninguém na grande cidade, salvo as estátuas. E como não tinha com quem falar, conversou com elas sobre grandes temas humanos.
A Nação tem o sagrado direito à sua memória, a dialogar com seus antepassados, indagar de suas estátuas e seus monumentos os mistérios dos acontecimentos remotos e as incertezas do destino, pois, afinal, resta perseverar na obra comum que com tanto sacrifício eles iniciaram: o Brasil, mestiço, grande e generoso – e não “paisagem dócil” ou contorno irrelevante no mapa do mundo.