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Comparato: empresários brasileiros bancaram o Golpe de 64

Lei da Anistia foi "conclusão de pacto oculto"!
publicado 10/06/2018
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O Conversa Afiada publica trechos do artigo "Compreensão histórica do regime empresarial-militar brasileiro entre 1964 e 1985", de autoria de Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito da Universidade de Paris:

Mais de meio século após a instauração do mais longo regime de exceção de nossa história política, é importante examinar suas causas e analisá-lo num amplo contexto social, ultrapassando fatos singulares e personagens individuais.

(...) Em todo o curso da História do Brasil, a organização do poder apresentou uma estrutura dualista, englobando de um lado os agentes estatais, e de outro lado os potentados privados, ou seja, os grandes proprietários e empresários. (...) Quanto ao povo propriamente dito, ele nunca, nem de longe, deteve a soberania e, salvo períodos de curta duração – como durante a “Era Vargas”, por exemplo – ficou totalmente alheio ao esquema geral de exercício do poder político (...)

Na gênese do golpe de Estado de 31 de março de 1964, encontramos a profunda cisão lavrada entre os dois grupos que sempre compuseram a oligarquia brasileira (...) Até então, os conflitos entre ambos eram sempre resolvidos por meio de arranjos conciliatórios, segundo a velha tradição brasileira. Nos últimos anos do regime constitucional de 1946, porém, essa possibilidade de conciliação tornou-se cada vez mais reduzida. A principal razão para tanto foi o agravamento do confronto político entre esquerda e direita no mundo todo, no contexto da Guerra Fria e em especial, na América Latina, com a Revolução Cubana. (...)

Era natural, nessas circunstâncias, que os grandes proprietários e empresários, nacionais e estrangeiros, temessem pelo seu futuro em nosso país e se voltassem, agora decididamente, para o lado das Forças Armadas, a fim de que estas depusessem os governantes em exercício, substituindo-os por outros, associados aos potentados privados, segundo a velha herança histórica. (...) O que o empresariado não levou em conta, todavia, era o fato de que a corporação militar amargurava, desde a proclamação da República, uma série de tentativas malsucedidas para livrar-se da subordinação ao poder civil. Não seria justamente naquele momento, quando chamadas a salvar o grande empresariado do perigo esquerdista, que as Forças Armadas iriam depor os governantes em exercício, para voltar em seguida à caserna.

Na preparação do golpe, o governo norte-americano teve uma atuação decisiva. (...) De 1961 a 1966, atuou como embaixador norte-americano no Brasil Lincoln Gordon, que já em 1960 havia colaborado na implantação da Aliança para o Progresso, programa de ajuda oferecido pelos Estados Unidos aos países da América Latina, a fim de evitar que eles seguissem o caminho revolucionário de Cuba. Na preparação do golpe, Gordon coordenou a criação no Brasil de entidades de propaganda política, como o IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Sabe-se, aliás, por uma gravação depois divulgada, que já em 30 de julho de 1962 Lincoln Gordon discutiu com o presidente Kennedy, na Casa Branca, o gasto de US$ 8 milhões para “expulsar do poder, se necessário”, o presidente João Goulart.

Como arma decisiva, o governo norte-americano – ao que parece a pedido dos militares brasileiros golpistas – desencadeou em março de 1964 a Operação Brother Sam, consistente em uma força-tarefa naval composta de um porta-aviões, quatro destróieres e navios-tanques para exercícios ostensivos na costa sul do Brasil, além de cento e dez toneladas de munição.

(...) Ao assumirem o comando do Estado, os chefes militares não hesitaram, ao longo dos anos, em mutilar o Congresso Nacional e o Judiciário: 281 parlamentares foram cassados e três ministros do Supremo Tribunal Federal aposentados compulsoriamente. Os governantes militares fizeram questão de submeter à sua dominação absoluta, durante as duas décadas do regime, o conjunto dos integrantes do poder civil, como uma espécie de desforra pela longa série de frustrações políticas por eles, homens de farda, sofridas desde o final do século XIX. É preciso reconhecer que a grande maioria dos agentes públicos, poupados pela repressão instaurada após o golpe, colaborou desonrosamente no funcionamento deste.

O novo regime político fundou-se na aliança das Forças Armadas com os latifundiários e os grandes empresários, nacionais e estrangeiros. Esse consórcio político engendrou duas experiências pioneiras na América Latina: o terrorismo de Estado e o neoliberalismo capitalista. A partir do exemplo brasileiro, vários outros países latino-americanos adotaram nos anos seguintes, com explícito apoio dos Estados Unidos, regimes políticos semelhantes ao nosso.

Um dos setores em que a colaboração do empresariado com a corporação militar mais se destacou foi o das comunicações de massa. As Forças Armadas e o grande empresariado necessitavam dispor de uma organização capaz de desenvolver, em todo o território nacional, a propaganda ideológica do regime autoritário, com a constante denúncia do perigo comunista e a difusão sistemática, embora sempre encoberta, dos méritos do sistema capitalista. Os chefes militares decidiram, para tanto, fixar sua escolha no Sistema Globo de Comunicações. Em 1969, ele possuía três emissoras (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte). Quatro anos depois, em 1973, já contava com nada menos do que onze.

A dominação empresarial do sistema de comunicações de massa continuou a subsistir, uma vez encerrado o regime autoritário, e persiste até hoje. (...)

Alguns anos mais tarde, quando se verificou que todos os grupos engajados na luta armada contra o regime haviam sido exterminados, os empresários começaram a manifestar sua irritação com a permanência dos militares no comando do Estado Brasileiro. Tanto mais que os homens de farda deixaram-se seduzir pelas vantagens econômicas particulares desfrutadas no comando do Estado, tais como o exercício de cargos de administração altamente remunerados em empresas estatais, várias delas criadas a partir do golpe de 1964. (...) A classe empresarial entendia, assim, haver chegado o momento de voltar a instalar no país o tradicional regime da falsa democracia representativa, em cuja fachada aparece o poder oficial atribuído a agentes políticos eleitos, enquanto por trás dela tem livre curso a dominação econômica, exercida pelos potentados privados.

(...) A pressão do empresariado para que os chefes militares deixassem o poder foi reforçada com a redução significativa da taxa de crescimento econômico do país, a partir do final do governo Geisel. Mas a corporação fardada hesitava em deixar o comando do Estado, procurando a todo custo uma garantia de que, quando isso ocorresse, os agentes policiais e militares responsáveis pelos atos de criminalidade violenta contra opositores ao regime não seriam punidos. Essa solução contava com o apoio decidido do grande empresariado, quando mais não fosse porque alguns de seus líderes (...) foram co-autores dos crimes de terrorismo de Estado, havendo financiado a operação do sistema repressivo.

Por sugestão dos políticos colaboradores do regime, os chefes militares decidiram afinal embarcar no movimento já iniciado de anistia aos presos e exilados políticos, de modo a estendê-la aos autores de crimes de terrorismo de Estado.

É deplorável constatar que o nosso país é o único na América Latina a continuar sustentando a validade de uma auto-anistia decretada pelos militares que deixaram o poder. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Peru, na Colômbia e recentemente na Guatemala, o Poder Judiciário decidiu pela flagrante inconstitucionalidade desse remendo institucional. (...) No Brasil, (...) até hoje nem um só autor de crime praticado no quadro do terrorismo de Estado do regime empresarial-militar foi condenado pela Justiça.

(...) A votação da lei de anistia em 1979 representou, na verdade, a conclusão de um pacto oculto entre as Forças Armadas e ambos os grupos que sempre exerceram conjuntamente a soberania entre nós – os agentes políticos e os potentados econômicos privados –, com o objetivo de devolver aos dois últimos o comando supremo do Estado, que os militares haviam arrebatado em 1964. (...)