Emiliano, Dilma e Goulart
Às ruas!
publicado
22/08/2016
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O Conversa Afiada republica da Caros Amigos afiado artigo do afiado jornalista Emiliano José
Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações.
A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do antissindicalismo, antirreforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos que eles servem ou representam.
A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobras.
É a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais.
É a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.
O que está ameaçando o regime democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua solidariedade às grandes causas nacionais.
Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.
Democracia é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.
Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo.
Não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reivindicações.
Estaríamos, sim, ameaçando, o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação que, de norte a sul, de leste a oeste, levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura.
Sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior em revoltantes condições de miséria.
Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua.
Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tenta levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das expressivas figuras do episcopado brasileiro.
O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.
A maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana.
Os milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais humildes.
Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e de objetivo.
Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformar.
Que não é mais possível admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.
Quem disse que tais palavras, assim certeiras, diretas, não poderiam ser ditas pela presidenta Dilma nos dias de hoje?
O diagnóstico sobre a desigualdade, a luta pela terra, o ataque à Petrobras, a sanha das grandes empresas nacionais e multinacionais, a utilização do cristianismo de modo ostensivo pela direita, tudo isso soa tão atual, sem tirar nem pôr.
São palavras sacadas do brilhante, intenso, emocionado discurso do presidente João Goulart, no comício da Central do Brasil, dia 13 de março de 1964, nas proximidades do golpe do dia 2 de abril, quando o Congresso Nacional decreta, a seu modo, o impeachment do presidente, sob o argumento de que ele havia abandonado o País.
Goulart, como se sabe hoje, como se sabia então, estava ainda em Porto Alegre, discutindo as possibilidades de resistir à sublevação golpista. Nos golpes, importa pouco a verdade ou a mentira. Estamos vendo isso com toda nitidez, novamente.
À distância, é possível avaliar melhor o papel de Goulart, ele, que durante bom tempo, foi visto como um vacilante, como homem sem coragem e sem clareza de objetivos. Ou, numa vertente mais teórica, como um “populista”, espécie de mantra com que eram classificados os que não se enquadrassem nos conceitos revolucionários predominantes em grandes áreas da esquerda.
Goulart foi um reformista, e aqui apreendendo o melhor sentido do conceito. Na fase final de seu governo, entendeu não ser mais possível a conciliação com as classes dominantes, e resolveu assumir as reformas pelas quais sempre lutara, apoiando-se nas forças de esquerda.
De alguma forma, era um tiro no escuro.
Espécie de tudo ou nada.
Desde os anos 50, por seu compromisso com os trabalhadores, tornara-se alvo da direita.
Getúlio foi obrigado a demiti-lo do Ministério do Trabalho por conta de sua proposta de aumento de 100% do salário mínimo.
Assume a presidência da República em 1961 enfraquecido, sob o fogo da chantagem militar e de adversários do calibre de Carlos Lacerda, que não o queriam presidente de modo nenhum após a renúncia de Jânio Quadros naquele ano.
Fez inteligentemente o acordo do parlamentarismo, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro para poder assumir.
Ganhou de lavada o plebiscito no início de 1963: 9 milhões votam presidencialismo, 1 milhão, parlamentarismo.
1963 seria o ano em que iniciaria as reformas que defendia.
Aparentemente, estava forte.
A confrontação por parte da direita vinha já de algum tempo, sem que Goulart provavelmente desse conta dela, ao menos com a gravidade que demonstrará ter à frente.
Lacerda, dia 1º de outubro de 1963, dá entrevista ao correspondente no Brasil do Los Angeles Times, Julien Hart, onde, entre tantas coisas, dizia que os militares, em relação a Goulart, debatiam-se se era melhor tutelá-lo, patrociná-lo, pô-lo sob controle ou alijá-lo imediatamente - tirá-lo do poder, dar o golpe.
Goulart, pressionado por alguns militares, propôs o Estado de Sítio, logo em seguida.
Sofreu pressão da direita e da esquerda, esta porque acreditava que a medida podia também atingi-la, Arraes e Brizola entre eles.
E a proposta não vingou.
Tivesse vingado, prendido Lacerda, como pretendia, usado a força contra a reação – Goulart usava muito o termo reação para designar o campo conservador – e certamente a história seria a outra.
Quando o Estado de Sítio foi recusado, Goulart chegou a dizer que ali estava configurada a sua derrota. Waldir Pires me revelou isso, íntimo que era do presidente.
Era a crônica de um golpe anunciado.
Isolado, Goulart não cede à tentação de render-se à direita, o que era sempre possível, estivesse disposto à conciliação.
A chamada “Rede da Legalidade”, fruto de acordo entre Roberto Marinho, Nascimento Brito e João Calmon, colocou todo o seu aparato midiático a serviço do golpe, atividade incrementada a partir do final do segundo semestre de 1963.
Massacrava o presidente minuto a minuto, como sempre agiu a mídia hegemônica, ontem como hoje, quando se trata de governo progressista.
Goulart seguia adiante, não mudava de rumo.
Pretendia, e sempre reafirmava isso, ser digno do legado de Getúlio, especialmente de seu segundo governo, do qual participou, mesmo quando sacado do Ministério do Trabalho.
Estende os benefícios da Previdência Social aos trabalhadores rurais, irritando o latifúndio. Não acreditava mais em conciliação com esse setor.
Com tais gestos, vai se reaproximando das esquerdas.
Não ouve o canto da sereia dos conservadores.
Institui a escala móvel de vencimentos. Determina a revisão das concessões de exploração das jazidas minerais e cancela aquelas que não haviam sido exploradas.
A Federação das Indústrias de São Paulo e os bancos dizem às claras que embarcaram na canoa golpista.
Ontem como hoje. Goulart não recua.
A 24 de dezembro de 1963, assina o decreto do monopólio da Petrobras na importação de petróleo e derivados, o que desagrada a gregos e troianos do campo conservador, os de cá e de modo especial os EUA e as sete irmãs do petróleo.
Em 17 de janeiro de 1964, outra medida, extremamente ousada: assina a regulamentação final da Lei de Remessa de Lucros para o exterior. Entraria em vigor naquele mês.
Os EUA, irritadíssimos.
Os golpistas alvoroçados e fortemente articulados, civis e militares.
É visível, quando se faz uma retrospectiva, que o campo da esquerda, Goulart incluído, talvez não tivesse consciência mais completa do grau avançado da articulação golpista, mesmo que o desabafo diante da derrota da proposta do Estado de Sítio indicasse um Goulart relativamente consciente de que podia sofrer um golpe. Relativamente.
Talvez por isso, por saber que não havia mais conciliação possível, que o próprio PSD dava sinais de bandear-se para o campo golpista, aproxima-se mais e mais das esquerdas, sem que estas não estivessem também suficientemente articuladas para resistir à magnitude do golpe que viria, como provado está.
E veio o impressionante comício da Central do Brasil.
No comício, dando mais passos à esquerda, Goulart assina decreto, que era, na visão dele, um primeiro passo para a reforma agrária: considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeavam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União.
Assina, ainda, a encampação de todas as refinarias de petróleo. Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas e Destilaria Rio Grandense passavam a pertencer ao Estado.
Complementava o decreto do monopólio de importação de petróleo e derivados.
Reafirmou ao final de seu discurso para mais de 200 mil pessoas a disposição de continuar a lutar pela reforma agrária, reforma tributária, reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, “pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil”.
O impeachment do presidente, feito pelo Congresso, ocorreria na madrugada de 2 de abril, já com tanques nas ruas, numa articulação militar e civil, menos de um mês após o majestoso comício de março.
Darcy Ribeiro diria, com precisão, que Goulart caíra não por seus defeitos, mas por seus méritos. Quisera fazer um governo a favor do povo, dos trabalhadores. Orientou políticas nessa direção. Foi assim com Getúlio. A mesma coisa com Goulart.
Os conservadores brasileiros não suportam nenhuma aragem progressista.
A presidenta Dilma está sendo vítima de uma tentativa de golpe, como se sabe.
Leva também o nome de impeachment.
Não importa que não haja crime.
E isso acontece pela simples razão de que ela e Lula, nos mandatos para o qual foram eleitos, desenvolveram políticas de melhorias na vida dos mais pobres do Brasil, e isso sempre foi insuportável para os conservadores brasileiros, presentes no Congresso, em setores amplos do sistema de Justiça, na mídia hegemônica, e nas classes dominantes desse país, que nunca conseguiram se livrar de suas marcas escravocratas.
Tudo como dantes.
Há momentos em que desconfio de que o Brasil nega a formulação de Marx de que a história não se repete. Que, na primeira vez, o fato histórico ocorre como tragédia. Na segunda, como farsa.
Creio que a nossa trajetória desmente essa afirmação.
Os golpes têm se sucedido, e são sempre tragédia. Em 1964, a reação foi mínima, os tanques entraram pelo Rio de Janeiro e seguiram país afora, sem praticamente nenhuma oposição. O Congresso referendou a marcha dos tanques. As esquerdas não estavam preparadas.
Agora, contra o golpe sem tanques – mídia, sistema de justiça, Congresso Nacional, Fiesp, bancos, classes dominantes – houve rua, houve articulação contrária, mobilizações expressivas, mas os comandantes da operação golpista, as instituições que a comandam, fazem ouvidos de mercador. Significa que podem agir assim, reuniram uma coalização de forças conservadoras capaz de fazer frente à reação popular.
Estão surdos ao fato de que condenarão uma inocente.
Como sobre vários dos comandantes do golpe pesam acusações de crimes graves, a operação tem também um objetivo adicional, e nada secundário: a partir de seu término, se houver a vitória do golpe, pretendem construir caminhos que os livrem de qualquer punição, o que não é nada improvável face à natureza seletiva do sistema de Justiça.
Espera-se que nessas próximas horas, cresça a mobilização popular de modo a pressionar o Congresso Nacional, e evitar que se condene uma inocente.
Espera-se.
O que essa tentativa de impeachment quer é retirar os direitos dos que vivem do trabalho, cessar a distribuição de renda iniciada nesses 13 anos de governos sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores, criminalizar o campo progressista e impedir a candidatura de Lula em 2018.
A hora decisiva está chegando.
E às forças populares só restam às ruas.
Não temos que desprezar nada, nenhuma articulação no Senado deve ser desconsiderada.
Mas, definitivamente, as mudanças de voto no Senado que possam beneficiar Dilma só virão da pressão popular, das ruas do Brasil.
Às ruas!
A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do antissindicalismo, antirreforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos que eles servem ou representam.
A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobras.
É a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais.
É a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.
O que está ameaçando o regime democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua solidariedade às grandes causas nacionais.
Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.
Democracia é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.
Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo.
Não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reivindicações.
Estaríamos, sim, ameaçando, o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação que, de norte a sul, de leste a oeste, levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura.
Sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior em revoltantes condições de miséria.
Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua.
Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tenta levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das expressivas figuras do episcopado brasileiro.
O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.
A maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana.
Os milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais humildes.
Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e de objetivo.
Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformar.
Que não é mais possível admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.
Quem disse que tais palavras, assim certeiras, diretas, não poderiam ser ditas pela presidenta Dilma nos dias de hoje?
O diagnóstico sobre a desigualdade, a luta pela terra, o ataque à Petrobras, a sanha das grandes empresas nacionais e multinacionais, a utilização do cristianismo de modo ostensivo pela direita, tudo isso soa tão atual, sem tirar nem pôr.
São palavras sacadas do brilhante, intenso, emocionado discurso do presidente João Goulart, no comício da Central do Brasil, dia 13 de março de 1964, nas proximidades do golpe do dia 2 de abril, quando o Congresso Nacional decreta, a seu modo, o impeachment do presidente, sob o argumento de que ele havia abandonado o País.
Goulart, como se sabe hoje, como se sabia então, estava ainda em Porto Alegre, discutindo as possibilidades de resistir à sublevação golpista. Nos golpes, importa pouco a verdade ou a mentira. Estamos vendo isso com toda nitidez, novamente.
À distância, é possível avaliar melhor o papel de Goulart, ele, que durante bom tempo, foi visto como um vacilante, como homem sem coragem e sem clareza de objetivos. Ou, numa vertente mais teórica, como um “populista”, espécie de mantra com que eram classificados os que não se enquadrassem nos conceitos revolucionários predominantes em grandes áreas da esquerda.
Goulart foi um reformista, e aqui apreendendo o melhor sentido do conceito. Na fase final de seu governo, entendeu não ser mais possível a conciliação com as classes dominantes, e resolveu assumir as reformas pelas quais sempre lutara, apoiando-se nas forças de esquerda.
De alguma forma, era um tiro no escuro.
Espécie de tudo ou nada.
Desde os anos 50, por seu compromisso com os trabalhadores, tornara-se alvo da direita.
Getúlio foi obrigado a demiti-lo do Ministério do Trabalho por conta de sua proposta de aumento de 100% do salário mínimo.
Assume a presidência da República em 1961 enfraquecido, sob o fogo da chantagem militar e de adversários do calibre de Carlos Lacerda, que não o queriam presidente de modo nenhum após a renúncia de Jânio Quadros naquele ano.
Fez inteligentemente o acordo do parlamentarismo, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro para poder assumir.
Ganhou de lavada o plebiscito no início de 1963: 9 milhões votam presidencialismo, 1 milhão, parlamentarismo.
1963 seria o ano em que iniciaria as reformas que defendia.
Aparentemente, estava forte.
A confrontação por parte da direita vinha já de algum tempo, sem que Goulart provavelmente desse conta dela, ao menos com a gravidade que demonstrará ter à frente.
Lacerda, dia 1º de outubro de 1963, dá entrevista ao correspondente no Brasil do Los Angeles Times, Julien Hart, onde, entre tantas coisas, dizia que os militares, em relação a Goulart, debatiam-se se era melhor tutelá-lo, patrociná-lo, pô-lo sob controle ou alijá-lo imediatamente - tirá-lo do poder, dar o golpe.
Goulart, pressionado por alguns militares, propôs o Estado de Sítio, logo em seguida.
Sofreu pressão da direita e da esquerda, esta porque acreditava que a medida podia também atingi-la, Arraes e Brizola entre eles.
E a proposta não vingou.
Tivesse vingado, prendido Lacerda, como pretendia, usado a força contra a reação – Goulart usava muito o termo reação para designar o campo conservador – e certamente a história seria a outra.
Quando o Estado de Sítio foi recusado, Goulart chegou a dizer que ali estava configurada a sua derrota. Waldir Pires me revelou isso, íntimo que era do presidente.
Era a crônica de um golpe anunciado.
Isolado, Goulart não cede à tentação de render-se à direita, o que era sempre possível, estivesse disposto à conciliação.
A chamada “Rede da Legalidade”, fruto de acordo entre Roberto Marinho, Nascimento Brito e João Calmon, colocou todo o seu aparato midiático a serviço do golpe, atividade incrementada a partir do final do segundo semestre de 1963.
Massacrava o presidente minuto a minuto, como sempre agiu a mídia hegemônica, ontem como hoje, quando se trata de governo progressista.
Goulart seguia adiante, não mudava de rumo.
Pretendia, e sempre reafirmava isso, ser digno do legado de Getúlio, especialmente de seu segundo governo, do qual participou, mesmo quando sacado do Ministério do Trabalho.
Estende os benefícios da Previdência Social aos trabalhadores rurais, irritando o latifúndio. Não acreditava mais em conciliação com esse setor.
Com tais gestos, vai se reaproximando das esquerdas.
Não ouve o canto da sereia dos conservadores.
Institui a escala móvel de vencimentos. Determina a revisão das concessões de exploração das jazidas minerais e cancela aquelas que não haviam sido exploradas.
A Federação das Indústrias de São Paulo e os bancos dizem às claras que embarcaram na canoa golpista.
Ontem como hoje. Goulart não recua.
A 24 de dezembro de 1963, assina o decreto do monopólio da Petrobras na importação de petróleo e derivados, o que desagrada a gregos e troianos do campo conservador, os de cá e de modo especial os EUA e as sete irmãs do petróleo.
Em 17 de janeiro de 1964, outra medida, extremamente ousada: assina a regulamentação final da Lei de Remessa de Lucros para o exterior. Entraria em vigor naquele mês.
Os EUA, irritadíssimos.
Os golpistas alvoroçados e fortemente articulados, civis e militares.
É visível, quando se faz uma retrospectiva, que o campo da esquerda, Goulart incluído, talvez não tivesse consciência mais completa do grau avançado da articulação golpista, mesmo que o desabafo diante da derrota da proposta do Estado de Sítio indicasse um Goulart relativamente consciente de que podia sofrer um golpe. Relativamente.
Talvez por isso, por saber que não havia mais conciliação possível, que o próprio PSD dava sinais de bandear-se para o campo golpista, aproxima-se mais e mais das esquerdas, sem que estas não estivessem também suficientemente articuladas para resistir à magnitude do golpe que viria, como provado está.
E veio o impressionante comício da Central do Brasil.
No comício, dando mais passos à esquerda, Goulart assina decreto, que era, na visão dele, um primeiro passo para a reforma agrária: considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeavam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União.
Assina, ainda, a encampação de todas as refinarias de petróleo. Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas e Destilaria Rio Grandense passavam a pertencer ao Estado.
Complementava o decreto do monopólio de importação de petróleo e derivados.
Reafirmou ao final de seu discurso para mais de 200 mil pessoas a disposição de continuar a lutar pela reforma agrária, reforma tributária, reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, “pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil”.
O impeachment do presidente, feito pelo Congresso, ocorreria na madrugada de 2 de abril, já com tanques nas ruas, numa articulação militar e civil, menos de um mês após o majestoso comício de março.
Darcy Ribeiro diria, com precisão, que Goulart caíra não por seus defeitos, mas por seus méritos. Quisera fazer um governo a favor do povo, dos trabalhadores. Orientou políticas nessa direção. Foi assim com Getúlio. A mesma coisa com Goulart.
Os conservadores brasileiros não suportam nenhuma aragem progressista.
A presidenta Dilma está sendo vítima de uma tentativa de golpe, como se sabe.
Leva também o nome de impeachment.
Não importa que não haja crime.
E isso acontece pela simples razão de que ela e Lula, nos mandatos para o qual foram eleitos, desenvolveram políticas de melhorias na vida dos mais pobres do Brasil, e isso sempre foi insuportável para os conservadores brasileiros, presentes no Congresso, em setores amplos do sistema de Justiça, na mídia hegemônica, e nas classes dominantes desse país, que nunca conseguiram se livrar de suas marcas escravocratas.
Tudo como dantes.
Há momentos em que desconfio de que o Brasil nega a formulação de Marx de que a história não se repete. Que, na primeira vez, o fato histórico ocorre como tragédia. Na segunda, como farsa.
Creio que a nossa trajetória desmente essa afirmação.
Os golpes têm se sucedido, e são sempre tragédia. Em 1964, a reação foi mínima, os tanques entraram pelo Rio de Janeiro e seguiram país afora, sem praticamente nenhuma oposição. O Congresso referendou a marcha dos tanques. As esquerdas não estavam preparadas.
Agora, contra o golpe sem tanques – mídia, sistema de justiça, Congresso Nacional, Fiesp, bancos, classes dominantes – houve rua, houve articulação contrária, mobilizações expressivas, mas os comandantes da operação golpista, as instituições que a comandam, fazem ouvidos de mercador. Significa que podem agir assim, reuniram uma coalização de forças conservadoras capaz de fazer frente à reação popular.
Estão surdos ao fato de que condenarão uma inocente.
Como sobre vários dos comandantes do golpe pesam acusações de crimes graves, a operação tem também um objetivo adicional, e nada secundário: a partir de seu término, se houver a vitória do golpe, pretendem construir caminhos que os livrem de qualquer punição, o que não é nada improvável face à natureza seletiva do sistema de Justiça.
Espera-se que nessas próximas horas, cresça a mobilização popular de modo a pressionar o Congresso Nacional, e evitar que se condene uma inocente.
Espera-se.
O que essa tentativa de impeachment quer é retirar os direitos dos que vivem do trabalho, cessar a distribuição de renda iniciada nesses 13 anos de governos sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores, criminalizar o campo progressista e impedir a candidatura de Lula em 2018.
A hora decisiva está chegando.
E às forças populares só restam às ruas.
Não temos que desprezar nada, nenhuma articulação no Senado deve ser desconsiderada.
Mas, definitivamente, as mudanças de voto no Senado que possam beneficiar Dilma só virão da pressão popular, das ruas do Brasil.
Às ruas!