Mino: o Judiciário foi o primeiro motor do Golpe
Ele sabe por que...
publicado
27/08/2018
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Por Mino Carta, na Carta Capital:
Por que
Há um importante contraponto à tradicional resignação do povo brasileiro e à impávida normalidade imposta às ruas pelo comportamento da minoria privilegiada: a força de Lula continua in crescendo. As pesquisas admitem até que ele poderia ganhar no primeiro turno. Cerca de 40% dos eleitores não desistem da liderança do ex-presidente. Dadas as circunstâncias, um toque revolucionário clama na preferência.
Dois espaços são visíveis. Um, material, a dizer que Lula não sairá da prisão, antes de mais nada pela determinação do Judiciário politizado e pela velhacaria da mídia. Dois, cultural, diria mesmo intelectual, e nele se manifesta com nitidez a vontade popular.
Existe um conflito evidente por ora controlado, destinado a explodir, porém, mais cedo ou mais tarde. Certos nós algum dia terão de ser desatados, quem sabe com o apoio do mundo democrático e civilizado.
Difícil explicar ao cidadão europeu ou ao liberal estadunidense o fato inaudito: um país do tamanho e da importância do Brasil sofreu um golpe de Estado perpetrado em conjunto pelos próprios poderes da República com o suporte midiático praticamente maciço, para impedir a eleição de Lula.
O próprio STF atirou ao lixo a Constituição que lhe cabia defender, com a pronta adesão das quadrilhas instaladas no Executivo e no Legislativo. E dos barões do dito jornalismo nativo, e dos seus capatazes, capitães do mato e escravos resistentes.
A despeito de um vago ar de modernidade, o Brasil não deixou de ser terra de predação, onde os aborígenes, em vez de receber miçangas e adereços, foram dizimados por heróis chamados bandeirantes pela história perenemente manipulada, enquanto navios negreiros alcançavam suas costas para desembarcar mão de obra escravizada território adentro.
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Quando a independência foi proclamada por um príncipe aflito por desarranjos intestinais, a população do País era mais negra do que branca e ninguém se deu conta da mudança política.
Afora os mandatos de Lula, dois momentos da nossa história apontaram para uma pátria digna. Em Minas, na segunda metade do século XVIII, na região encantada em torno de Ouro Preto, embora explorada brutalmente pelos colonizadores portugueses que com as dádivas da terra reconstruíram Lisboa destruída pelo terremoto.
No Brasil na sua inteireza, de Getúlio Vargas a Jango Goulart, Juscelino no meio, quando nasceu a Petrobras, o País tornou-se a décima quinta potência industrial do mundo e foram elaboradas as chamadas reformas de base por alguns cidadãos de muita fé e insólita coragem.
A quadra setecentesca em Minas, definida como Inconfidência, exibe uma cálida, surpreendente sintonia com as ideias iluministas europeias, tanto na política quanto na cultura. Os mineiros do recanto primaram na arquitetura, na escultura, na música, na pintura dos retábulos, com algumas investidas na poesia. Ao cabo, Tiradentes, o alferes, foi esquartejado.
Jango Goulart e Leonel Brizola teriam o mesmo fim se vivessem no século XVIII, em 1964 foram derrubados pelo golpe, quando os militares se prestaram ao serviço sujo. A casa-grande sempre ganhou a parada, e está ainda de pé.
Inútil dissertar sobre a mediocridade reinante onde a ignorância e o provincianismo são apanágio de ricos e super-ricos, e sempre foram. Os do fim do século XIX e começo do passado saíam de viagem, preferivelmente a Paris, e embarcavam com pistola de cabo de madrepérola no cinto e vacas leiteiras para garantir um bom café da manhã. A influência cultural era então a francesa. Mais tarde, trocaram a Ville Lumière por Miami.
Apesar da natural dificuldade em entender o que acontece no Brasil do futebol e do carnaval, cresce a repulsa internacional à prisão de Lula, a contradizer as regras mais elementares do Direito . Como anota Leonardo Sakamoto, na sua coluna no UOL, a demanda do Comitê dos Direitos Humanos da ONU a favor da participação de Lula no próximo pleito “é o terceiro revés sofrido pelo governo brasileiro em instituições multilaterais nos últimos dois meses”.
O golpe de 2016 e suas consequências chamam a atenção do mundo para os efeitos daninhos do estado de exceção. A 3 de agosto especialistas das Nações Unidas condenaram o corte de gastos sociais do governo Temer e no início de junho passado a Organização Internacional do Trabalho solicitou explicações sobre a reforma trabalhista até novembro próximo, diante da suspeita de que desrespeita a Convenção de 1998, a tratar de sindicalização e negociação coletiva.
Mas que respeito merece um país onde no ano passado cerca de 64 mil cidadãos foram assassinados? Cidades brasileiras figuram entre as mais perigosas do mundo, mesmo que estas vivam em estado de guerra.
E que respeito pode haver por um país tão desigual, onde educação e saúde são reservadas aos ricos, embora aquela de forma precária e certamente eivada de preconceitos e desinformação histórica? Quanto à saúde, avulta a sinistra informação de que quase 50% do território nacional carece de saneamento básico.
Quando adolescente já me irritava entre o fígado e a alma o verso do samba, Mangueira, o teu cenário é uma beleza. Visto de qual ponto de observação? Era também o tempo de outro samba, ou marchinha que fosse, a afirmar O teu cabelo não nega, mulata,/ porque és mulata na cor,/ mas como a cor não pega, mulata,/ mulata eu quero o teu amor. Sustentava-se então a ausência absoluta de preconceito racial. E há mesmo algo ainda mais profundo, a incompatibilidade irreversível entre o Brasil e a democracia.
Rara a consciência do semelhante, comum a prática da rasteira, do passa-moleque, do golpismo em todos os matizes e níveis possíveis. De resto, como instalar a democracia no país da mídia de mão única, porta-voz da casa-grande? Os recentes eventos de Roraima provam que a informação falsa se torna habitual, como no caso da agressão contra refugiados venezuelanos, exemplo deplorável de xenofobia de marca fascistoide.
Os privilegiados nutrem-se do verbo dos escribas a soldo do baronato e lhes repetem as frases feitas e as mentiras, a tevê do Plimplim cuida de atingir porções da população inclusive com suas novelas. Trata-se de impedir o nascimento de uma opinião pública, e nem se fale de uma sociedade civil.
Quem acredita na existência de tais misteriosas entidades trafega na névoa. O Brasil não atingiu a Idade da Razão, e dela se afasta até transpor a fronteira da insanidade e o monstruoso desequilíbrio social nos mantém na Idade Média.
A Inconfidência Mineira e o período 1950-1964 prometiam a contemporaneidade do mundo, a casa-grande incumbia-se do imediato retorno ao passado cada vez mais entrevado. Só me pergunto como se dá que o esquartejamento do rebelde Tiradentes seja celebrado com direito a um singular feriado a glorificar o surto revolucionário.
Hoje o mundo civilizado nos encara e haverá de perceber a nossa medievalidade com a mesma clareza com a qual condena a prisão de Lula culpado por ser o favorito de um pleito que, sem ele, não passa de uma fraude.
É como conferir ao Judiciário a condição de primeiro motor do golpe, enquanto as sondagens dilatam o favoritismo do preso sem crime. Imaginar o futuro é sempre prova de vitalidade e ouso agora pressentir um fio de esperança na incerteza do dia de hoje.