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No STF do Toffoli, o diabo mora no procedimento

Hübner: como o toffolês explica suspensão de investigações do COAF
publicado 28/07/2019
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O Conversa Afiada reproduz da revista Época artigo de Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e professor da USP:

Colaboração premiada (em toffolês)


No toffolês, as letras enganam. Dialeto arranhado do juridiquês, essa língua estrangeira enfeitada por muito arcaísmo, pouca concisão e nenhuma objetividade, o toffolês se decifra mais pelos trejeitos e fraquezas da pessoa que fala do que pela literalidade. Se o húngaro é a única língua que o diabo respeita, o toffolês talvez seja a única língua que respeita Bolsonaro. Uma língua que faz pinta de conteúdo para que o vácuo de pensamento passe despercebido.

O homem que sabia toffolês, hoje presidente do STF, usou da competência mais patológica do tribunal — o poder monocrático para decisões liminares a qualquer tempo, de qualquer duração — para suspender nada menos que a totalidade das investigações pré-judiciais, feitas com base em informações do Coaf, contra crimes financeiros no país. Por ser presidente da Corte, ter poder absoluto de pauta e, ainda por cima, acumular o papel de relator desse caso, o tema está ao sabor de seus humores e amores.

A magnitude dos efeitos da liminar já foi listada por críticos: suspende e ameaça anular milhares de investigações em curso; joga fora todo o recurso público e a energia institucional investida; desobedece regra do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro, que reúne 35 países; pode impactar avaliação de risco do país e causar punição internacional; afasta investidores e torna o Brasil um lugar atraente para crimes financeiros globais.

Se boas razões jurídicas houvesse, mereceria respeito. Frustrou-se, contudo, quem esperava explicação de fôlego para uma decisão de tamanho impacto. Encontramos razões de ocasião com a leniência argumentativa de praxe. Em nome da segurança jurídica, Toffoli desrespeitou decisão de 2017 do plenário do STF. O precedente entendia que, em nenhuma hipótese, a suspensão de processos “abrangerá inquéritos policiais ou procedimentos investigatórios do Ministério Público” (Recurso Extraordinário 966.177). Gerou insegurança jurídica. Faltou também base legal, pois o Código de Processo autoriza o STF a suspender processos, não investigações preliminares (artigo 1.035).

A fundamentação não ficou só no texto escrito. Em declarações opinativas à imprensa — essa outra licença ética dos ministros —, afirmou: “É fascista, no sentido de autoritário, o Estado que não garante ao cidadão o direito à privacidade, à intimidade”. Não sei se existe um sentido não autoritário de fascismo, mas todos concordamos com a frase. Desconheço alguém que não assine embaixo. Só faltou explicar por que e como se aplica ao caso.

No STF, o diabo mora no procedimento (ou na falta dele): a decisão foi tomada não pelo tribunal, mas por um ministro sozinho; não no tempo regular, mas no recesso judicial, em que decisões só se justificam quando excepcionais à última potência; deu-se poucas horas depois que o pedido de Flávio Bolsonaro pousou no tribunal; resolveu, abruptamente, suspender regra em vigência há anos, o que não fez em casos similares; para agravar, ao escantear o plenário e personalizar a decisão, jogou sobre si a sombra da suspeição, pois beneficiou indiretamente a própria esposa e outro ministro da Corte, que sofrem investigações; ainda reforça, outra vez, a hipótese de que a presidência do STF negocia constitucionalidade com o governo que o ataca.

Desaprendemos a ler decisões do STF. Preferimos olhar as entrelinhas e os bastidores, interpretá-las à luz de quem tem interesse em quê, de quanto cada ministro e familiares lucram com isso. O texto passou a ser supérfluo, um desperdício de tempo, inclusive para juristas. O STF se fez o tribunal do obscurantismo procedimental e da arbitrariedade argumentativa. Na falta de qualquer padrão decisório, libera-se de qualquer constrangimento ou limite.

Meses atrás, Toffoli se confessava um “cordeiro imolado para fazer o bem”. Assegurava que, cedo ou tarde, “vão reconhecer que estamos certos”. Nesta semana, ponderou que “o exercício da árdua missão de julgar revela-se ainda mais desafiador em um mundo globalizado, digitalmente conectado”. Esse “mundo globalizado, digitalmente conectado” é seu pesadelo. Com ferramentas potentes para vasculhar o tribunal e demonstrar suas disfuncionalidades, com mais capacidade computacional para fazer contas e visualizar relações espúrias que antes se escondiam no oceano de decisões do STF, a pesquisa acadêmica e jornalística perdeu a reverência. A vocação colaboracionista da presidência do STF, por baixo da capa aborrecida do toffolês, ficou indisfarçável. Qual será o prêmio?

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