O Bandido da Luz Verde e Amarela
Por Prof. Adilson Mendes:
No terrível momento pelo qual atravessa o país a função do professor está como nunca esteve antes sob franco ataque, especialmente se se trata de um professor em universidade privada, ainda mais em universidade que defende abertamente o atual governo e suas mortíferas reformas. Entretanto, se o clima de demissão iminente faz acentuar a concorrência total (o que transforma em anedota a expressão de Hegel: “o reino animal do espírito”), por outro lado a presença em sala de aula se transforma em instigante laboratório sobre nosso presente gangrenado. Diante da apatia generalizada (dos alunos transformados em clientes e dos professores tornados atendentes) o frescor das obras consagradas se transforma em alento contra o salário miserável e as metodologias falsamente modernas, compradas de empresas locais e/ou norte-americanas (há neste momento no Brasil uma acirrada luta entre poucos grupos - locais e internacionais - que disputam o butim resultante da desmanche do já precário ensino público). De ambos os lados o compromisso é com a aniquilação do pensamento crítico e a contínua emissão de diplomas ocos. Nesse jogo perverso de destruição da já penosa educação brasileira o professor é um obstáculo. Ele atrapalha ou atenua o desmonte instantâneo.
Diante desse quadro, o tema da redação do Enem surge como um raio em noite sombria. Tratar do cinema nacional em um momento de destruição como o que estamos vivendo permite pensar no quanto a expressão audiovisual participa do novo momento da disputa colonial. As empresas norte americanas pressionam todos os setores locais com sua voracidade histórica. Não por acaso, o governo atual desmantelou por completo a instituição de memória audiovisual do país: a Cinemateca Brasileira, que agora vira tema da imprensa burguesa francesa, a única a se chocar com a mostra de cinema militar. Se o passado é esquecido, o presente precisa ser desfigurado imediatamente. O desmonte irracional da Ancine é o resultado da disputa internacional do audiovisual, onde o Brasil vai confirmando seu histórico lugar de subalternidade. Para o professor que vive esse momento ao menos ainda é possível se voltar de forma independente para as grandes obras de nossa cultura brasileira e confronta-las com o presente.
Um oportuno experimento é ver hoje o filme O BANDIDO DA LUZ VERMELHA (1968). O filme de Rogério Sganzerla converte a presença (material e imaginaria) norte-americana sufocante em ironia corrosiva e gesto criativo transformador, subvertendo os gêneros tradicionais da indústria cinematográfica de Hollywood para construir um universo caótico, de desprezo, pilhagem e desumanização.
O filme se abre anunciando o estado de sítio, o AI-5, não sua versão farsesca recente, mas o Ato Institucional n. 5, aquele que decretou o golpe dentro do golpe de 1964.
Diante de mais uma destruição da democracia no país, o filme de Sganzerla evidencia o quanto as elites rapaces brasileiras (Sganzerla apreciava muito GREED, de Stroheim!) não permitem que a democracia assegure a transformação social necessária a um país do Terceiro Mundo. Quando a situação parece fugir do controle americano, há a suspensão da democracia de aparência. República de segunda mão, estamos condenados ao malogro, ao fracasso, à esculhambação total.
O diagnóstico ácido do filme foi destacado pela crítica desde seu surgimento no tumultuado ano de 1968. Mas pouco se falou sobre a qualidade literária dos textos de Rogério Sganzerla. A densidade dramática do filme faz com que ele continue a se insurgir contra a realidade brasileira que, ao não se transformar, repete seus fantasmas.
Vejamos um exemplo da experiência literária a que nos oferece o texto de Sganzerla:
Voz da rádio de Itapecerica da Serra:
É o império da bolinha, da desordem e dos gângsters. Da prostituição em massa. Do tráfico de menores. Do crime industrializado e do comércio automobilístico. Uma cidade dentro de uma cidade. Um bairro criminal cheio de fome e culpa. A Boca do Lixo! A mais completa. A consagração de todas as Bocas.
Enquanto ouvimos as inesquecíveis vozes de uma rádio de Itapecerica da Serra, temos uma visão panorâmica da região central de São Paulo, cujos escombros e sucatas se mesclam às construções de novos edifícios. A mistura de planos rápidos com uma sonoridade esfuziante desorientam o espectador, que aos poucos, por meio da repetição e de ações que não se concluem, vai penetrando nesse universo estilhaçado.
Personagens atravessam o quadro para reiterar disposições que remetem para além de suas individualidades precárias.
Os personagens - se é que se pode chamá-los assim - apontam para um estado de uma época, parecem compor um tecido de ideias recebidas de um momento de confirmação do atraso. “É que a Amazônia, também é Brasil. Nordeste tá passando fome. O petróleo é nosso! E o grande Amazonas, esse gigante verde e caudaloso quando é que vai despertar?”
O ataque à arte promovido pela figura do detetive Sade, ou, para os íntimos, Cabeção, não deixa dúvidas quanto ao posicionamento das autoridades :
Cabeção: Ah ! Arte moderna! É o que sempre digo: coisa de depravado! Lixo!
Tarzan: Lixo? Mas só aquele quadro valia mais de 5 milhão.
Cabeção: É isso mesmo! Quanto mais podre, mais caro. Por mim eu mandava juntar tudo isso e botava fogo. Admito tudo, menos essa laia de parasitas intelectuais.
A sequência em que o Bandido se vinga de um empresário que maltratara seu afilhado, o moleque Zica, é outro desses momentos em que os personagens parecem reproduzir um espírito de época mas sem nele se diluir, ao contrário, ironizam-o na sua caricatura grotesca. Depois de fazer justiça com as próprias mãos, o Bandido vai se divertir ensinando a criança a manipular uma arma.
O culto da dominação pela violência, o ódio à inteligência e a manipulação da verdade são os pilares do universo caótico do filme de Sganzerla. E quem melhor concentra esses elementos é quem melhor se beneficia do caos, montando seu golpe midiático-político e fortalecendo suas milícias. O grande chefão da Boca do Lixo, JB da Silva é assim definido:
Esta é a verdadeira história do homem que bebia uma garrafa de uísque estrangeiro por dia. Inventor do macete para ganhar no bicho. E do método do violão mágico por correspondência. O homem que oficializou o palavrão na política brasileira. Do chefe supremo, rei, e talvez a própria lei de um império de 1 milhão de metros quadrados.
Ainda no aeroporto após viagem suspeita a Madri, em seu discurso inaugural JB, o Maior, declara:
No meu governo eu vou acabar com guerras, atentados e revoluções. Sim, porque eu tenho um lema: o petróleo é nosso!
Em sequência posterior JB da Silva, o Maior, continua seu discurso , agora já devidamente instalado num estúdio de televisão. Apesar de seu tom agressivo contra o jornalista, ela responde questões amenas:
Jornalista: Quantos tiros já levou o ministro?
JB: Ministro não ! Secretário! Uns cinco mil, mas fui atingido apenas por 37. Tenho o corpo fechado por obra dos meus Santos protetores: Cosme e Damião.
Jornalista: E o seu programa de governo?
JB: O programa sou eu mesmo. Foi preciso que aparecesse alguém, um homem místico como eu pra dar uma luz e uma esperança para esse povo. Eu vou abrir as prisões. Vou construir a casa do pai solteiro. Vou instituir o natal da criança mal-criada. E os pobres enfim vão mastigar! Vou distribuir chiclete pros pobres, para que eles mastiguem noite e dia. E o camponês, esse eterno olvidado, esse será contemplado com picaretas elétricas. Vou construir mais! Vou construir o lar do milionário arruinado. Eu preciso dizer que se houver roubo nas eleições eu resolvo à bala.
Jornalista: Uma pergunta do telespectador: a que deve tanta sorte nos atentados?
JB: Bem, a Divina Providência, o meu santo anjo da guarda, que sempre me guiou. E também a minha confiança, a confiança em mim próprio. Sim, porque eu acerto um cigarro a vinte metros de distância, dependendo naturalmente do meu 32.
Jornalista: É seu predileto?
JB: É! Desde mocinho.
Jornalista: Já pensou em ser diplomata?
JB: Não! Nem diplomata, nem professor de português e nem arquiteto.
Jornalista: Que acha do colete da Tersal a prova de balas.
JB: Prefiro o meu. Estou com ele há 30 anos.
Jornalista: Dizem que o ministro é um mestre no violão e no piano. Um novo Mozart.
JB: Componho valsinhas, xotes, coisinhas...
Jornalista: Já matou alguém, excelência?
JB: Eu não ! Quem mata é Deus! Conversa.
Jornalista: Então existe mesmo um complô terrorista?
JB: Não me faça rir.
Jornalista : E os nomes?
JB: Meia dúzia de gatos pingados liderados pelo Luz. A verdadeira bomba atômica do momento eu vou soltar é no lançamento da minha candidatura, na sede do Esporte Clube Epopeia.
O BANDIDO DA LUZ VERMELHA tem seu momento de maior radicalidade na experimentação sonoro-visual quando vozes e sons da cidade misturam-se com planos do Bandido a pedir rabo de galo e comer esfihas em botecos, ou cuspir cachaça em praça pública e exibir seu fuzil. Cerimoniosa, a voz da rádio de Itapecerica da Serra anuncia:
E atenção! Muito cuidado! Você poderá ser um dos cidadões (sic) metralhados à porta de suas residência (sic) e em seu automóvel em pleno centro da capital.
Em outro momento a mesma voz sentencia:
As autoridades defendem categoricamente a hipótese de tudo ser obra de invasores internacionais mas admitem que começa, ao que tudo indica, o terrorismo no Brasil. O terror se instala e ninguém sabe o que vai acontecer. Tudo é possível!
Para completar a imagem do caos, um factoide surge direto de A-ra-ra-qua-ra.
Experimentada no fim de 2019, a fraseologia sonoro-visual do filme de Sganzerla - misto da corrosão oswaldiana com a grandiloquência wellesiana - parece ter adquirido uma atualidade impressionante. O seu diagnóstico final é catastrófica: a construção de um clima de terror sem limites inclui atentados com bombas que visam justificar o estado de sítio. Brasileiros de 2019, se preparem, o Terceiro Mundo vai explodir e quem tiver de sapato não sobra!
Gostou desse conteúdo? Saiba mais sobre a importância de fortalecer a luta pela liberdade de expressão e apoie o Conversa Afiada! Clique aqui e conheça! |