O sadismo contra Marisa Letícia
Vivemos onda fascista de ódio!
publicado
03/02/2017
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Créditos: Ricardo Stuckert
O Conversa Afiada publica texto da amiga navegante Vera Malaguti Batista, professora de criminologia da Faculdade de Direito da UERJ e secretária executiva do Instituto Carioca de Criminologia:
Para D. Marisa Letícia
Temos assistido no Brasil dos últimos vinte anos à construção e expansão desenfreada do poder punitivo, seja na sua forma prisão, seja na multiplicação de forças privadas e públicas de segurança, nas tecnologias de vigilância e na constituição das áreas urbanas pobres em campos de concentração a céu aberto, sujeitas a todo tipo de arrepios da legalidade. Tudo isso tem sido amalgamado por uma opinião pública educada ao longo dos anos por noticiários, filmes, seriados e novelas que destilam uma apologia ao castigo na sua versão mais inquisitorial e truculenta. A guerra contra as drogas, imposta pelos Estados Unidos durante a ditadura, ganhou fôlego e transformou-se no moinho contemporâneo de gastar vidas pretas e pobres. A demonização dos meninos pobres que vendem alguma substância ilícita para os que podem comprar ajudou muito a expandir o aparato penal em tempos de democracia. Ajudou também a legitimar não só o grande encarceramento mas também a tortura e o extermínio. O espetáculo penal que produzia resistências durante os anos de chumbo passou a ser tolerado, elogiado e aplaudido a tal ponto que assistimos hoje a um gozo macabro com a dor dos outros. A grande mídia fornece aos seus espectadores ávidos uma espécie de BBB carcerário com a exposição de acusados, cerimônias degradantes, vazamentos criminosos de conversas sob sigilo e principalmente uma invasão da privacidade dos encarcerados célebres que têm sua vida na prisão aberta aos canais de TV. Todo o noticiário busca estimular em seus telespectadores uma espécie de sadismo punitivo, garantindo-lhes que o sofrimento vai ser grande. É uma espécie de democratização às avessas, que tenta legitimar o sistema penal com uma falsa sensação de que no Brasil agora há justiça, mesmo que os “colarinhos brancos” não cheguem a representar 0,1% da população detida. A mera privação da liberdade não basta, tem que haver dor, humilhação, incomunicabilidade e letalidade em massa. Se as prisões explodem, a solução apontada é prender mais e por mais tempo; afinal, a economia da indústria do controle do crime precisa disso para o aumento da sua lucratividade. A classe política brasileira encontra-se acuada para o enfrentamento dessa criminalização e tornou-se o alvo preferencial desse processo. Saudades de Leonel Brizola... O sistema penal nasceu na Europa pós-revolucionária para controlar as ilegalidades populares e nunca para as ilegalidades como um todo (o que não seria possível mesmo porque quem ficaria de fora? Que atire a primeira pedra aquele que nunca houver cometido nenhuma ilegalidade). Essa seletividade é a marca de todos os sistemas penais. No Brasil é claro que a criminalização e a demonização foram dirigidas ao campo popular, convergindo para os governos do PT. Os erros cometidos por seus integrantes em nada diferem dos erros cometidos por todos os que fazem o jogo político-eleitoral do capitalismo na periferia. Criou-se uma atmosfera de ódio fascista que nunca existiu nos piores anos do autoritarismo. Os alvos dessa indignação construída são cobertos de humilhações, desrespeito e violências físicas e existenciais. Daqui a alguns anos saberemos as verdadeiras ligações e propósitos das operações judiciais espetaculosas que quebraram o Brasil e entregaram um volumoso mercado para empresas estrangeiras “puras”. Os heróis de hoje serão vistos no futuro como agentes de uma gigantesca entrega do patrimônio nacional. A história não perdoa, é uma espécie de Deus que desvela no tempo suas verdades.