Paulo Nogueira Batista Jr.: sobre a polêmica proposta de uma frente ampla
(Arte: CTB)
Por Paulo Nogueira Batista Jr¹ - “Só tenho um objetivo, a destruição de Hitler, e isso simplifica minha vida consideravelmente. Se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Comuns”. Winston Churchill disse essas frases a propósito da aliança com Stalin e a União Soviética – aliança que repugnava a muitos integrantes da classe dirigente britânica. Lembrei-me delas a propósito da nossa situação no Brasil hoje.
A ideia de uma frente ampla em defesa da democracia é polêmica e suscita reações negativas compreensíveis. A principal razão é clara. Nos anos recentes, praticamente desapareceu o centro político no Brasil. Não existe mais, a rigor, um conjunto discernível e relevante de forças políticas de centro. Deve-se reconhecer, portanto, que propor uma frente ampla significa propor uma aliança da esquerda com a direita – uma aliança contra a extrema direita que se instalou em Brasília.
A proposta é inegavelmente indigesta. A direita tradicional merece os epítetos que a esquerda costuma lançar contra ela. É repulsivo, em especial, defender a democracia ao lado de figuras que apoiaram e ativamente promoveram o golpe parlamentar de 2016 e as barbaridades subsequentes. A questão, leitor, é que – como a Inglaterra de Churchill – o Brasil corre um risco mortal.
Como não perceber, a essa altura, que o que temos desde janeiro de 2019 é um governo de destruição nacional? Não há área da vida pública brasileira que não esteja submetida a um processo de desestabilização e desintegração – a economia, o emprego, a saúde em meio à pandemia, o meio ambiente, a educação, a cultura, a administração pública, as instituições, a soberania nacional. Temos um governo que se enrola na bandeira nacional para rastejar aos pés dos Estados Unidos. O Brasil perdeu toda a credibilidade no plano internacional e deixou de ser levado em conta como voz independente. Somos vistos hoje com um misto de desprezo, pena e preocupação.
Já não escapa a ninguém, a essa altura, que o governo Bolsonaro constitui uma ameaça real ao que sobrou da democracia brasileira depois do golpe de 2016 e dos desmandos dos anos seguintes. Muitos que na justiça, na mídia e na política fazem oposição a Bolsonaro são integrantes, não raro destacados, da tradicional direita brasileira – agora alarmada com as tendências desagregadoras e ditatoriais do governo federal.
Cabe lembrar que as camadas dirigentes nacionais são sempre muito sensíveis à opinião internacional, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. É um dos traços marcantes do seu vira-latismo. Tudo que é dito em inglês, por mais trivial e superficial, adquire para eles ares de profunda e inquestionável sabedoria. Assim, a visão profundamente negativa que se formou a respeito do governo brasileiro nos principais canais de mídia do Ocidente pesa – e muito – na decisão tardia de fazer oposição a Bolsonaro.
O governo está mais isolado hoje do que estava há poucos meses. Desgastou-se muito pela maneira incompetente e irresponsável com que respondeu à pandemia. Infelizmente, porém, não é verdade que o seu governo tenha chegado ao fim da linha. Conserva importantes pontos de apoio – nas forças armadas, nas milícias, nas polícias militares e num segmento de cerca de 30% da opinião pública. Ainda tem, apesar de tudo, capacidade de produzir grandes estragos.
Nessas condições, não deve a oposição de esquerda ou centro-esquerda engolir seco e trabalhar em conjunto, quando houver oportunidade, com forças da direita tradicional dispostas a defender a democracia e fazer oposição ao governo? Na minha modesta opinião, a resposta deve ser afirmativa.
A questão é espinhosa, volto a dizer. O manifesto “Estamos Juntos”, por exemplo, pede que sejam deixadas de lado velhas disputas e apela para a união da esquerda, do centro e da direita. Percorri a lista de signatários e encontrei muitas pessoas que respeito e admiro. Mas a verdade é que, no seu conjunto, a lista é ligeiramente tenebrosa. Aparecem ali muitos políticos, economistas, jornalistas e outros profissionais que deram contribuição notável à desgraça que estamos vivendo.
Devo dar exemplos? A língua me coça. Mas não, não darei nome aos bois desta vez. É a minha pequena contribuição ao clima de entendimento que precisa prevalecer na frente ampla em formação.
Compreendo perfeitamente a recusa de muitos na esquerda a aceitar aliados da direita. O mesmo sentimento, diga-se, deve existir do outro lado. O campo de convergência é limitado. É até possível que uma frente realmente ampla seja inviabilizada por resistências e escrúpulos da direita. O sectarismo não é privilégio da esquerda e parece, inclusive, até mais acentuado no campo da direita.
Seja como for, só há uma coisa pior do que lutar com aliados: lutar sem aliados – outra tirada de Churchill que merece ser lembrada. Ele sabia perfeitamente que a União Soviética era indispensável na guerra contra a Alemanha e não permitiu que escrúpulos anticomunistas dificultassem a luta contra o inimigo principal. Mutatis mutandis, é o que precisamos fazer hoje.
Não há dúvida de que as diferenças entre os vários setores da oposição ao governo são imensas. Mas o que está em discussão não é uma reconciliação de forças opostas. Uma frente ampla é meramente circunstancial, fruto da emergência em que se encontra o Brasil. A aliança que é possível hoje e que alguns tentam construir não é, nem pode ser, uma aliança programática. Tampouco pode ser uma aliança de tipo eleitoral.
Se funcionar, ela terá propósitos limitados, mas cruciais. Trata-se, primordialmente, de defender a nação, o povo brasileiro e a democracia contra os arroubos destrutivos e ditatoriais do governo e seus asseclas. E a experiência mostra, de forma cada vez mais clara, que preservar o país e a democracia significa trabalhar incansavelmente para afastar, o mais rápido possível, Bolsonaro da Presidência da República.
Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital em 12 de junho de 2020.
1 - O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou recentemente pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.