PHA nos chama à ousadia e à coragem!
Poucos conheceram a carreira de PHA no cinema... Cena de "Cinco Vezes Favela", filme de 1962 dirigido por Leon Hirszman, Cacá Diegues e outros (Reprodução)
Na noite de terça-feira, 16/VII, a família de Paulo Henrique Amorim recebeu amigos e admiradores do ansioso blogueiro para uma cerimônia em memória do jornalista, falecido no dia 10 no Rio de Janeiro.
O encontro aconteceu na capela Nossa Senhora de Sion, na Avenida Higienópolis, São Paulo.
O Conversa Afiada reproduz, abaixo, discurso feito durante a cerimônia pela atriz e amiga de PHA, Olga Fernández:
Boa noite.
É uma honra estar aqui para celebrar Paulo Henrique Amorim junto com vocês.
Eu gostaria de me apresentar. Eu sou a Olga, Olga Fernández, atriz e amiga de Paulo Henrique e Geórgia e, com muito respeito, escrevi algumas palavras que gostaria de compartilhar com vocês.
Tive a honra de conhecer Geórgia e Paulo Henrique em 2017, quando concebi uma homenagem a Leon Hirszman, pelos 80 anos de seu nascimento.
Talvez só alguns aqui presentes saibam que, quando tinha por volta de 20 anos de idade, Paulo Henrique participou ativamente do Centro Popular de Cultura do Rio de Janeiro, o CPC da UNE, como Leon e tantos outros companheiros de geração (assim como Celso Amorim, que não pôde estar presente hoje e a quem eu cito agora, muito honrosamente, e talvez companheiros de jornada que até estejam aqui esta noite). O CPC foi um projeto prático de democratização cultural, entre 1961 e 1964, uma experiência para Paulo Henrique nunca esquecida e que vibrou sempre em sua trajetória. Temos registro de seu engajamento de corpo e alma em alguns breves fotogramas de um curta-metragem integrante do filme 5 x Favela (que foi a primeira produção cinematográfica do CPC), e onde ele surge numa pequenina participação sem falas (imaginem só, com aquela voz, sem falas!), mas lá ele já emanava o brilho e a elegância que, em sua figura apolínea, todas as câmeras que o filmaram reconheceriam ao longo de tantos anos seguintes.
Bem, Paulo Henrique foi a primeira pessoa que convidei para participar daquela homenagem a Leon Hirszman, o convidado ilustre que me respondeu com o primeiro sim antes de todos os outros sins que vieram depois e que nos permitiram, juntos, criar uma bela celebração também de resistência neste tempo sombrio que estamos atravessando, e que já estava em curso.
Paulo Henrique entendeu perfeitamente que desejava que ele fizesse a fala que encerraria a mostra, perpassando a história sócio-cultural e política deste país de lá para cá, bem ao seu estilo e verve narrativa, em que a palavra soa sempre como uma lança, uma lança afiada que, mesmo cortante, com seu jeito único vai rasgando os minutos, e convidando o público à reflexão.
Paulo Henrique preparou uma fala magistral que aliava, como sempre, ação crítica a rigor e humor, embora ali um humor contido: diante do balanço aflitivo de nossa história, houve instantes, dada a honestidade do testemunho sentido que nos deu, em que, ao falar de paradoxos vividos neste nosso Brasil, se emocionou diante de todos nós, e nós junto com ele.
Foi um prazer imenso apresentá-lo naquela noite revelando suas origens, como ator fascinado pelo cinema, e lhe disse que essa descoberta dava a conhecer ao público um pouco das raízes misteriosas de seu talento como intérprete – talento que foi, nesses últimos dias, exaltado por seus amigos e companheiros Mino Carta e Luis Nassif.
Paulo Henrique se surpreendeu - mas por sua risada, acho que gostou muito de saber que eu o considerava um ator brechtiano exemplar e que escolhia trechos de seus vídeos como referência artístico-pedagógica para apreciar com meus alunos de interpretação.
Sim, Paulo Henrique foi um autêntico ator herdeiro de Brecht, no sentido mais amplo, pela sensibilidade própria que unia dialeticamente, intrinsecamente distanciamento e opacidade à emoção. Mas também porque, assim como aquele que foi o encenador-dramaturgo por excelência da história do teatro mundial, criava sua própria dramaturgia, brilhante dramaturgo do texto e da mise-en-scène que materializava, experimentando constantemente novos desafios formais que, como artista que era, com senso de direção artística aprimorava em seus experimentos em vídeo no Conversa Afiada, sempre com a parceria de Geórgia Pinheiro, companheira de trabalho e companheira de vida.
Ser um artista assim como ele, no interior da aparência de ser um jornalista-autor, escritor e editor não é pouco, verdade?
O caráter exemplar de Paulo Henrique, porém, creio que vai muito além da circunscrição estético-política propriamente dita, atravessa o território da interpretação, dramaturgia e direção para alcançar a dimensão mais vívida que eu acredito ser necessária à vida cotidiana de cada um de nós, necessária a uma vida bem vivida com legitimidade.
Afinal, a postura que reconhecemos em suas falas afiadas diante da câmera é de ação, exercício permanente da ação crítica exemplar, pois aliada ao rigor ético, vinculado à sabedoria do exercício do humor, humor às vezes doído, mesclado a um tom pungente, uma pungência que as vezes vinha e surpreendia a gente em alguns momentos de exceção como um soco no estômago, pra causar um espanto e a gente se espantar juntos e cair em prantos.
Sua atitude traz sempre em si a ousadia mais em paz consigo mesma – a ousadia dos honestos, - e nos chama a ter essa mesma ousadia, honesta e corajosa, sem a qual não se realiza nada que valha realmente a pena.
A Poesia, essa expressão infinitamente acolhedora, que para nascer exige do poeta grande ousadia, e que às vezes nos chega como uma dádiva, soprou em mim na manhã seguinte à partida súbita de Paulo Henrique.
Foi através de Sophia de Mello Breyner Andresen, poetisa portuguesa maior, de espírito tão guerreiro e fraterno como o de Paulo Henrique. Um poema seu se fez lembrar intensamente e mostrou que surgia para me fazer companhia aquele dia.
Entendi, e o transcrevi numa folha branca de papel, que eu tinha nas mãos quando cheguei à ABI para agradecer a Paulo Henrique sua grandeza, sua lucidez, sua marca indelével de entrega à verdade, sua humanidade. – Coragem, você está de mãos dadas com o poema! – eu disse para mim mesma. Lá, quando abracei a Geórgia, senti muita força em sua imensa suavidade. Eu lhe disse que as palavras de Sophia me acompanhavam e me falavam de Paulo Henrique, e pedi licença (ou melhor, foi ela, a poesia, que pediu licença através de mim), pedi licença para ler para ela, baixinho, este poema, que se chama Porque:
– com licença poética de Sophia, Para Paulo Henrique:
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Paulo Henrique Amorim, muito obrigada. Contigo seguiremos aprendendo.
Em tempo: na quarta-feira 17/VII a TV Afiada irá exibir imagens da cerimônia em memória de PHA.
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