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Quem é o "novo" trabalhador? O desafio do PT

Pesquisa identifica um novo tipo de eleitor na periferia de SP
publicado 06/04/2017
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Eles não são metalúrgicos do ABC...

O Conversa Afiada reproduz artigo do professor William Nozaki, cientista político, economista, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenador do mestrado Estado, governo e políticas públicas FPA/FLACSO sobre pesquisa da Fundação Perseu Abramo:

Nova classe trabalhadora é contra aumento de impostos, mas reconhece a importância dos serviços públicos


Em comparação com os últimos cinquenta anos, o Brasil teve, nos governos Lula e Dilma, uma experiência inédita na transformação de sua estrutura social. As políticas de elevação real do salário mínimo, de expansão da oferta de crédito e de ampliação dos programas de transferência de renda, entre outras, estimularam o crescimento do PIB com base no avanço do mercado interno e originaram um tripé socioeconômico virtuoso caracterizado pelo aumento do mercado formal de trabalho, pela redução da pobreza e pela melhora na distribuição de renda. Entretanto, a retração do ciclo econômico e a crise política provocaram a interrupção do processo de inclusão social, de distribuição de renda e de mobilidade social.

Se, por um lado, tal fenômeno desperta o medo ou o ressentimento pelo declínio social, por outro lado, a crise reabre uma janela de oportunidades fazendo com que parte da população perceba a importância, nas suas trajetórias individuais, das políticas públicas implementadas pelo chamado período do lulismo. Essa combinação de fatores tem como uma de suas principais consequências a formatação de uma nova subjetividade entre as camadas populares das grandes cidades do país.

Trata-se de um grupo social cujos valores e votos permanecem em disputa, defendem o empreendedorismo, mas apoiam intervenções do Estado e comungam relações de comunidade e vizinhança; defendem a moralidade tradicional, mas rechaçam a repressão extrema e aceitam novas configurações familiares; defendem o livre-funcionamento do mercado, mas reclamam maiores investimentos governamentais em serviços e equipamentos públicos.

Para compreender essas mudanças em sua inteireza, é preciso empreender uma análise que ultrapasse as leituras baseadas nas informações de renda e rendimentos, é preciso incorporar outras variáveis como estrutura ocupacional, acesso a mercadorias privadas e a serviços públicos, padrões de consumo, entre outros. Esse são os elementos que nos permitem uma aproximação, ainda que muito preliminar, sobre as preferências desse novo grupo social.

Sob essa perspectiva o que se evidencia é que o mais adequado é denominar o estrato que ascendeu socialmente e economicamente nos últimos anos de nova classe trabalhadora urbana. Do ponto de vista ocupacional, trata-se de vendedores, balconistas, motoristas, motoboys, profissionais de telemarketing, Os diversos tipos de auxiliares que atuam em empresas e comércios, recepcionistas, cabeleireiros, garçons e uma heterogeneidade de trabalhadores qualificados.

Do ponto de vista da educação, seus integrantes na maioria são aqueles que utilizam as escolas públicas ou escolas particulares com mensalidades mais baixas; e, do ponto de vista da saúde, são aqueles que necessitam dos hospitais públicos ou de planos de saúde mais baratos. Esse balanceio instável entre os serviços públicos e as possibilidades privadas mais “em conta” se reproduz em outras esferas: habitação, transporte, segurança, alimentação, cultura, lazer, entretenimento etc.

Por esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida que se queixa dos impostos inadvertidamente, a nova classe trabalhadora percebe com contrariedade o aumento de impostos, taxas e tarifas pois sua elevação lhe afeta mais diretamente o poder de compra, mas ela também reconhece a importância e a necessidade dos serviços públicos pois depende deles mais frequentemente. Essa nova classe trabalhadora, em grande medida, trabalha de dez a catorze a catorze horas por dia, tem dois ou mais empregos, trabalha de dia enquanto estuda a noite, e, nas grandes cidades, enfrenta horas de transporte público enquanto se desloca entre a casa e o trabalho.

Também por esses motivos, ao contrário da classe média tradicional, que tudo atribui ao mérito individual, a nova classe trabalhadora percebe sua ascensão como fruto do esforço individual e de privações, mas sabe que precisa contar frequentemente com alguma rede de solidariedade e laços fraternos entre os amigos, os vizinhos e a igreja. Mais do que outros estratos, esse grupo se beneficiou da expansão do crédito ao consumidor e está satisfeito com a possibilidade de adquirir novos bens considerados indispensáveis para o conforto doméstico e para a melhora na qualidade de vida na cidade. Também por esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida, esse grupo queixa-se menos das taxas de juros abusivas e está mais disposto a encontrar sua sociabilidade pelos caminhos do consumo, o que não equivale ao consumismo, pois trata-se ainda do consumo de bens duráveis como eletrodomésticos e eletroeletrônicos.

Esse conjunto de ambiguidades leva a crer que a cultura política da nova classe segue sendo uma questão em disputa. Para compreender a relação entre as preferências econômicas e políticas dessa nova classe trabalhadora é fundamental considerar que o aumento do poder de compra possibilitou o acesso a novos canais de formação e informação, mais do que isso: tais canais têm sido ocupados, sobretudo, por um número significativo de jovens, e é a partir desse grupo que se irradiam certas opiniões políticas e eleitorais.

A progressiva ampliação do acesso à educação e à internet tem promovido uma importante mudança em suas exigências e interesses políticos. No atual contexto, o eixo da formação da opinião familiar ou comunitária passa a ter um peso mais decisivo dos jovens. A propósito, a maior parte desses jovens tem níveis de escolaridade mais elevados do que os dos pais, estão conquistando uma melhor inserção profissional e seguem atentos para as mudanças tecnológicas, por isso eles são ouvidos com maior atenção dentro das suas famílias e comunidades, atuando como referências importantes para a formação de opinião, concorrendo com a própria televisão.

Do ponto de vista religioso, o avanço do neopentecostalismo não significa necessariamente uma adesão imediata à chamada teologia da prosperidade, a igreja é mais importante do que a teologia, ou seja: o espaço de convívio e acolhimento acaba cumprindo a função de criação de laços e de prestação de serviços. Essa disposição para a mudança, entretanto, passa por marcos ambivalentes: essas pessoas acreditam na política, mas não crêem em partidos; reconhecem a importância da coletividade, mas almejam crescer individualmente; buscam transformações, mas são pouco afeitos a rupturas; anseiam por novas idéias, mas são também pragmáticos.

Em suma, esse novo caldo cultural exigirá renovações tanto na forma como se realiza a política partidária quanto no conteúdo das políticas públicas que se implementam. A mistura entre valores do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora das periferias de São Paulo. Sendo assim, qualquer tipo de explicação dualista: progressistas vs. conservadores, esquerda vs. direita, liberais vs. estatistas incorre numa simplificação grosseira, feita ou por desconhecimento e ingenuidade ou por má fé e oportunismo.

A seguir, um resumo da pesquisa, que o Conversa Afiada extraiu das conclusões da pesquisa:

UM RESUMO DA PESQUISA SOBRE AS PERIFERIAS DE SÃO PAULO

Resultados:

1 - A formulação e debate sobre a política se dão de forma superficial e ainda de acordo com
a agenda definida pela mídia hegemônica.

2 - ‘Categorias analíticas’ utilizadas pela militância política ou pelo meio acadêmico não fazem
sentido para os entrevistados

3 - A ‘política institucional’ também é vista, muitas vezes, como um bloco monolítico

4 - A cisão entre ‘classe trabalhadora’ e burguesia também não perpassa pelo imaginário
dos entrevistados

5 - Neste contexto, o ‘inimigo’ é o Estado

Resultados gerais:

1 - Há forte desejo por visibilidade e valorização pessoal, querem ter um ‘lugar no mundo’

2 - A ‘ascensão social’ é importante no processo de diferenciação

3 - No caminho para a ascensão é preciso
estabilidade

4 - A supervalorização do mérito encontra seu lugar

* Consumo: O capitalismo tenta desprover o cidadão de todos os elementos que constituem a identidade (cultura, identidade de classe). O consumo torna-se um meio importante de constituição da identidade e materialização da ascensão.

* Religião: de fato, a máxima ‘Deus ajuda quem cedo madruga, quem se esforça mais’ parece fazer sentido; Deus ajuda mais quem corre atrás, vai atrás dos sonhos, quem trabalha, quem se esforça

* Sobrevalorização do mercado em detrimento do Estado: Há pouca valorização do público, tanto que quando podem acessar, querem colocar filho na escola particular ou pagar convênio médico. A política
pública, em alguns casos, pode ser lida como uma desvalorização individual (p. ex., cotas). Os ideais comunitários e coletivistas praticamente não aparecem nas narrativas e, quando aparecem, restringem-se à dimensão da família, da vizinhança e da igreja

* Empreendedorismo: Muitos desejam ser empreendedores e utilizam como justificativa as ideias de não ter mais patrão, ter mais flexibilidade para gerir o próprio tempo, poder abrir o próprio negócio para trabalhar perto de casa, além da possibilidade de deixar patrimônio e herança para a família.

EIXO TEMÁTICO I:
CONSUMO E FAÇA POR SI MESMO

1 - A noção de empreendedorismo é muito presente em todas
as narrativas, mas aparece com um duplo significado:

Como sinônimo de empresário (‘ser empreendedor é ser patrão’)
e como produzir algo de forma autônoma. Nesse sentido, muitos daqueles que são trabalhadores do mercado informal ou trabalhadores por conta própria se auto-definem como empreendedores. É o ‘Faça por si Mesmo’

2 - Há solidariedade com os empresários

3 - O empreendedorismo aparece como aspiração, mas ainda é uma realidade distante

EIXO TEMÁTICO II:
FAMÍLIA, ESCOLA E TERRITÓRIO

FAMÍLIA

A família é o grande alicerce e solução para os problemas individuais e coletivos:

TERRITÓRIO:

1 - É a partir do espaço que vivem e as relações que nele estabelecem que se constitui
o sentido de pertencimento

2 - Esta relação com o território apresenta uma separação etária

3 - Ainda que não demonstrem interesse em sair do bairro, relatam inúmeros problemas da
região onde vivem

ESCOLA

1 - Escola é ferramenta para mobilidade social

2 - Acreditam que quanto maior a escolaridade melhor é o emprego

3 - Entretanto, sabem que as condições materiais e de ensino eram e são limitadoras

4 - Apresentam avaliação crítica em relação ao modelo de escola

5 - Entendem a escola particular como melhor

EIXO TEMÁTICO III:
RELIGIÃO E OS LIMITES DO ESTADO LAICO

A religião cumpre três funções fundamentais:

1 - Fornece principal espaço de sociabilidade, que dá sentido de comunidade, de pertencimento
e acolhimento, constituindo uma rede de apoio e solidariedade

2 - Dá orientação moral

3 - Funciona como “selo de honestidade e idoneidade”

O PONTO DE VISTA DOS VALORES, NÃO
APARECEM DIFERENÇAS RELEVANTES ENTRE
OS CRISTÃOS. DA MESMA FORMA,
POUCOS SÃO OS QUE DEMONSTRAM PERCEBER
DIFERENÇAS MARCANTES ENTRE
AS RELIGIÕES...

1 - Apresentam uma prática menos ‘conservadora’ do que discurso associado às igrejas

2 - As diferenças entre as religiões não são fundamentais. Rotatividade entre as igrejas é alta

3 - Maior adesão ao neopetencostalismo tem relação com elementos organizacionais

EIXO TEMÁTICO IV:
PERCEPÇÕES POLÍTICO INSTITUCIONAIS

A política como ferramenta de mudança social está em processo de descrédito, chegando, em alguns
casos, a ser até criminalizada

A política é suja e gera revolta e desconforto falar sobre ela, porém, todos sabem que ela influencia
em suas vidas, para o bem ou para o mal:

A solução passa por processos de:

1 - Moralização

2 - Aplicação da eficiência do mercado ao Estado

Entre as conclusões da pesquisa, estão:

* No imaginário da população não há luta de classes; o ‘inimigo’ é, em grande medida, o próprio Estado ineficaz e incompetente, abre-se espaço para o ‘liberalismo popular’ com demanda de menos Estado.

* A dimensão da vida pública é muito rarefeita e quase sempre a noção de “público” é tratada como sinônimo daquilo que é “de graça”. Nesse sentido, a própria relação com a esfera pública está mediada por interpretações mercantis.

* Em muitos casos, a visão de mundo é formada se espelhando não entre aqueles que pertencem ao mesmo grupo, mas entre aqueles que pertencem ao grupo onde esses indivíduos almejam chegar, é fundamental observar os desejos e as expectativas futuras dessas pessoas.

* A ascensão social está relacionada à coragem, ousadia e disciplina e é tratada como um resultado individual derivado da força de vontade. Muitas vezes isso significa estabelecer um sentimento de solidariedade mais estreito com os próprios empregadores do que com aqueles que partilham a mesma condição de classe. Nesse sentido, a resiliência, mais do que a resistência é um valor positivo.

* A lógica mercantil está presente mesmo na interpretação dos direitos trabalhistas e benefícios sociais. As pessoas confiam mais nos programas que ofertam imediatamente recursos financeiros (Bolsa Família/Passe Livre) do que nas leis que orientam direitos.

* Há uma busca por identificação com histórias de superação e sucesso, é nessa medida que figuras tão díspares como Lula, Silvio Santos e João Dória Jr. aparecem como exemplos. Em muitas circunstâncias a figura de Lula é admirada menos pelas políticas que o governo dele implementou, ainda que essa seja uma dimensão importante, e mais porque ele próprio é um bom exemplo de ascensão social.

* Atenção para o discurso que nega o ‘mérito’ →ele é importante na construção da identidade. A dimensão da vida privada é central para a constituição da subjetividade do indivíduo. O campo democrático-popular precisa produzir narrativas contra-hegemônicas mais consistentes e menos maniqueístas ou pejorativas sobre as noções de indivíduo, família, religião e segurança.

* Este cenário de descrédito da política, compreensão do Estado como máquina ineficaz somada à valorização da lógica de mercado e a ideologia do mérito abrem espaços para candidatos e projetos como o do João Dória ‘um não político, gestor trabalhador que ascendeu e, por isso, não vai roubar’

* MAS... entrevistados seguem acreditando em saídas democráticas, falam em fortalecimento dos processos de transparência e participação. No processo de formação de opinião, as condições materiais de vida e do cotidiano são preponderantes.