Quem jogou a lama em Mariana
Bercovici determina as responsabilidades
publicado
23/11/2015
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Lama com rejeitos chega ao mar no ES
Na Carta Capital:
"Atitude do Estado aumenta a probabilidade de desastres como o de MG"
Um dos maiores especialistas do País em direito de mineração, Gilberto Bercovici alerta que o Congresso é refém do mercado também nesse setor
por Carlos Drummond
A legislação para as empresas mineradoras parece feita para não ser cumprida. O Estado é permissivo na regulação e a fiscalização do DNPM é pífia ou inexistente, afirma o professor de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP, Gilberto Bercovici, um dos maiores especialistas do País em direito de mineração.
O Congresso é refém do mercado nesse setor e senadores articulam a simplificação do licenciamento ambiental, alerta o jurista em entrevista.
CartaCapital: Até que ponto a tragédia do rompimento da barragem de rejeitos da Samarco em Minas Gerais é uma tragédia anunciada, portanto evitável?
Gilberto Bercovici: Não consigo apontar categoricamente o agente que é integralmente responsável pela fatalidade. É muito cedo para afirmar sem qualquer prova contundente.
No entanto, a atividade minerária é imersa em circunstâncias que me parecem anunciar tragédias constantemente: o potencial de dano ambiental é grande, a fiscalização das operações pelo Governo Federal (por meio de sua autarquia, o Departamento Nacional de Produção Mineral) é fraca, para não dizer inexistente, os órgãos ambientais são morosos e o acompanhamento das barragens tanto pelo DNPM quanto pelos órgãos ambientais chega a ser meramente protocolar.
CC: Fala-se em uma combinação de morosidade burocrática com paradoxal aceleração da atividade exploratória quando a licença é emitida, para "compensar o tempo e a rentabilidade perdidos". O senhor concorda com essa percepção?
De fato, o processo de licenciamento ambiental é moroso (para o bem e para o mal). As etapas administrativas para obtenção da exploração da licença ambiental são muitas, complexas e exigem grande investimento por parte do minerador (pequeno se comparado a outros investimentos, como a pesquisa geológica, maquinário e aquisição do direito minerário, por exemplo).
Assim, pela lógica mercantil, o minerador tende a querer recuperar os custos que incorreu na etapa prévia à exploração com a maximização da produção desde o momento inicial da sua concessão.
No entanto, a exploração predatória, insustentável e que margeia a legalidade (quando, por exemplo, opera-se no limite da capacidade máxima produtiva – ou além dele) não pode ser admitida, sob qualquer pretexto, inclusive o econômico. Não cabe justificar a ganância das mineradoras com a “demora” dos órgãos públicos.
CC: A empresa, em vez de construir outra barragem, resolveu reforçar a existente. Isso é aceitável? O que diz a norma?
Há um quadro normativo bastante complexo em nosso país. A Lei n. 12.334/2010 estipula a política nacional de segurança de barragens, estabelecendo as diretrizes para se evitar tragédias desse tipo.
Especificamente, o DNPM já emitiu normas sobre essa matéria, como a Portaria n. 416/2012, que estipula os deveres da mineradora em informar como se dá a conservação de barragens de rejeitos. Ainda, este mesmo órgão publicou a Portaria n. 526/2013 que trata sobre o Plano de Ação de Emergência das Barragens de Mineração (PAEBM). Vê-se, portanto, que normas há, de todos os tipos.
Preocupa-me, no entanto, que tenham sido esquecidos por quem deveria zelar pelo cumprimento das obrigações dispostas em tais diplomas. No caso Samarco, questiono-me se o tal PAEBM foi elaborado de forma diligente. Se o foi, talvez tenham esquecido de mencionar em tal plano que se deveria avisar os moradores em caso de “acidente”...
CC: A legislação não obriga as empresas ao tratamento de resíduos nem à contratação de seguro ambiental. Como isso se explica, em que pese a sucessão de desastres do tipo?
Constitucionalmente, sabe-se que a proteção ao meio ambiente deve ser assegurada por todos (artigo 225 da Constituição). Em um outro plano, para citar uma das diversas normas que protegem (ou deveriam proteger) o meio ambiente, há uma Política Nacional de Resíduos Sólidos que trata, inclusive, dos resíduos da mineração (Lei n. 12.305/2010). Não há que se falar que os resíduos não carecem de tratamento.
É possível que o Estudo de Impacto Ambiental determine a contratação de seguro ambiental para que o projeto minerário possa ser explorado, por exemplo. Nesse sentido, podemos considerar que a contratação do seguro seria, de fato, uma obrigação da mineradora.
Em todo caso, a priori, não há previsão expressa e genérica que determine tal contratação. Ainda que existisse, não se sabe se sua eficácia seria realmente abrangente – visto que os custos de uma tragédia desse porte podem facilmente superar o limite máximo de indenização previsto contratualmente.
CC: Haveria uma permissividade do Estado na normatização e portanto na redução dos riscos da atividade mineradora no País?
Sem dúvida. O Estado costuma atuar de forma a suportar e aparelhar as mineradoras para a exploração do produto da lavra, exportando-o, sem que exista qualquer plano concreto para agregar valor ao produto mineral e assumir um comprometimento com os desenvolvimentos local e nacional.
Hoje, a indústria minerária é responsável pelo suporte financeiro de boa parte dos congressistas, como o do relator do novo marco regulatório da mineração (que, saliente-se, tende a desconstruir ainda mais a função da mineração como propulsora do desenvolvimento econômico do país), Leonardo Quintão.
Aliado a isso, tem-se que a exportação de minérios tem grande importância na balança comercial brasileira e no PIB brasileiro. Nesse cenário, os movimentos políticos e o quadro legislativo se tornam “reféns” do mercado.
É importante destacar que, além da legislação, que parece ter sido construída para não ter eficácia, a fiscalização conduzida pelo DNPM é pífia ou inexistente – o órgão foi absolutamente sucateado pela União e não dispõe de servidores em número suficiente ou estrutura adequada para realizar suas tarefas.
Ainda nesse diapasão, vale salientar que o Governo Federal levou quase uma semana para se manifestar a respeito do ocorrido; que senadores, amparados pela tragédia, estão articulando a simplificação dos procedimentos de licenciamento ambiental (com uma intenção, no mínimo, duvidosa); e que a multa inicialmente aplicada não coibiria a Samarco de continuar operando da forma que se encontrava.
Talvez fosse o caso de se buscar a caducidade do direito minerário, por exemplo, retirando-se tal ativo relevante da mineradora. Dessa forma, haveria uma punição exemplar no Brasil e os empresários do setor passariam a entender que o pior pode sim acontecer e eles devem se precaver de maneira eficaz para evitarmos novas tragédias.
por Carlos Drummond
A legislação para as empresas mineradoras parece feita para não ser cumprida. O Estado é permissivo na regulação e a fiscalização do DNPM é pífia ou inexistente, afirma o professor de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP, Gilberto Bercovici, um dos maiores especialistas do País em direito de mineração.
O Congresso é refém do mercado nesse setor e senadores articulam a simplificação do licenciamento ambiental, alerta o jurista em entrevista.
CartaCapital: Até que ponto a tragédia do rompimento da barragem de rejeitos da Samarco em Minas Gerais é uma tragédia anunciada, portanto evitável?
Gilberto Bercovici: Não consigo apontar categoricamente o agente que é integralmente responsável pela fatalidade. É muito cedo para afirmar sem qualquer prova contundente.
No entanto, a atividade minerária é imersa em circunstâncias que me parecem anunciar tragédias constantemente: o potencial de dano ambiental é grande, a fiscalização das operações pelo Governo Federal (por meio de sua autarquia, o Departamento Nacional de Produção Mineral) é fraca, para não dizer inexistente, os órgãos ambientais são morosos e o acompanhamento das barragens tanto pelo DNPM quanto pelos órgãos ambientais chega a ser meramente protocolar.
CC: Fala-se em uma combinação de morosidade burocrática com paradoxal aceleração da atividade exploratória quando a licença é emitida, para "compensar o tempo e a rentabilidade perdidos". O senhor concorda com essa percepção?
De fato, o processo de licenciamento ambiental é moroso (para o bem e para o mal). As etapas administrativas para obtenção da exploração da licença ambiental são muitas, complexas e exigem grande investimento por parte do minerador (pequeno se comparado a outros investimentos, como a pesquisa geológica, maquinário e aquisição do direito minerário, por exemplo).
Assim, pela lógica mercantil, o minerador tende a querer recuperar os custos que incorreu na etapa prévia à exploração com a maximização da produção desde o momento inicial da sua concessão.
No entanto, a exploração predatória, insustentável e que margeia a legalidade (quando, por exemplo, opera-se no limite da capacidade máxima produtiva – ou além dele) não pode ser admitida, sob qualquer pretexto, inclusive o econômico. Não cabe justificar a ganância das mineradoras com a “demora” dos órgãos públicos.
CC: A empresa, em vez de construir outra barragem, resolveu reforçar a existente. Isso é aceitável? O que diz a norma?
Há um quadro normativo bastante complexo em nosso país. A Lei n. 12.334/2010 estipula a política nacional de segurança de barragens, estabelecendo as diretrizes para se evitar tragédias desse tipo.
Especificamente, o DNPM já emitiu normas sobre essa matéria, como a Portaria n. 416/2012, que estipula os deveres da mineradora em informar como se dá a conservação de barragens de rejeitos. Ainda, este mesmo órgão publicou a Portaria n. 526/2013 que trata sobre o Plano de Ação de Emergência das Barragens de Mineração (PAEBM). Vê-se, portanto, que normas há, de todos os tipos.
Preocupa-me, no entanto, que tenham sido esquecidos por quem deveria zelar pelo cumprimento das obrigações dispostas em tais diplomas. No caso Samarco, questiono-me se o tal PAEBM foi elaborado de forma diligente. Se o foi, talvez tenham esquecido de mencionar em tal plano que se deveria avisar os moradores em caso de “acidente”...
CC: A legislação não obriga as empresas ao tratamento de resíduos nem à contratação de seguro ambiental. Como isso se explica, em que pese a sucessão de desastres do tipo?
Constitucionalmente, sabe-se que a proteção ao meio ambiente deve ser assegurada por todos (artigo 225 da Constituição). Em um outro plano, para citar uma das diversas normas que protegem (ou deveriam proteger) o meio ambiente, há uma Política Nacional de Resíduos Sólidos que trata, inclusive, dos resíduos da mineração (Lei n. 12.305/2010). Não há que se falar que os resíduos não carecem de tratamento.
É possível que o Estudo de Impacto Ambiental determine a contratação de seguro ambiental para que o projeto minerário possa ser explorado, por exemplo. Nesse sentido, podemos considerar que a contratação do seguro seria, de fato, uma obrigação da mineradora.
Em todo caso, a priori, não há previsão expressa e genérica que determine tal contratação. Ainda que existisse, não se sabe se sua eficácia seria realmente abrangente – visto que os custos de uma tragédia desse porte podem facilmente superar o limite máximo de indenização previsto contratualmente.
CC: Haveria uma permissividade do Estado na normatização e portanto na redução dos riscos da atividade mineradora no País?
Sem dúvida. O Estado costuma atuar de forma a suportar e aparelhar as mineradoras para a exploração do produto da lavra, exportando-o, sem que exista qualquer plano concreto para agregar valor ao produto mineral e assumir um comprometimento com os desenvolvimentos local e nacional.
Hoje, a indústria minerária é responsável pelo suporte financeiro de boa parte dos congressistas, como o do relator do novo marco regulatório da mineração (que, saliente-se, tende a desconstruir ainda mais a função da mineração como propulsora do desenvolvimento econômico do país), Leonardo Quintão.
Aliado a isso, tem-se que a exportação de minérios tem grande importância na balança comercial brasileira e no PIB brasileiro. Nesse cenário, os movimentos políticos e o quadro legislativo se tornam “reféns” do mercado.
É importante destacar que, além da legislação, que parece ter sido construída para não ter eficácia, a fiscalização conduzida pelo DNPM é pífia ou inexistente – o órgão foi absolutamente sucateado pela União e não dispõe de servidores em número suficiente ou estrutura adequada para realizar suas tarefas.
Ainda nesse diapasão, vale salientar que o Governo Federal levou quase uma semana para se manifestar a respeito do ocorrido; que senadores, amparados pela tragédia, estão articulando a simplificação dos procedimentos de licenciamento ambiental (com uma intenção, no mínimo, duvidosa); e que a multa inicialmente aplicada não coibiria a Samarco de continuar operando da forma que se encontrava.
Talvez fosse o caso de se buscar a caducidade do direito minerário, por exemplo, retirando-se tal ativo relevante da mineradora. Dessa forma, haveria uma punição exemplar no Brasil e os empresários do setor passariam a entender que o pior pode sim acontecer e eles devem se precaver de maneira eficaz para evitarmos novas tragédias.