Saturnino e uma ode a Eunice Paiva
Rubens e Eunice Paiva em viagem à Itália (Foto: Acervo da família)
O Conversa Afiada publica o novo Correio do Saturnino, do ex-senador Saturnino Braga:
EUNICE PAIVA
Saudade dela, da sua figura doce e calma, que com certeza foi um permanente bálsamo para o filhos.
Era uma família de São Paulo, que morou alguns anos no Rio, ao voltarem do exílio. Moraram numa casa da Rua Almirante Pereira Guimarães, na esquina da praia. Do outro lado da rua, estava a do meu sogro, a casa onde Eliana havia morado mais de 20 anos, até se casar comigo. Claro que ela adorava a casa, que era realmente muito boa, com quintal e galinheiro atrás. E a praia em frente era de longe a preferida de Eliana, a praia da sua infância e adolescência. Pois então, sábados e domingos, muito frequentemente, nós íamos à praia naquele local, onde estavam, quase sempre, Rubens e Eunice, com outro casal vizinho, Eltes Arroxelas.
Rubens já era um amigo muito próximo, foi deputado por São Paulo, eleito, como eu, em 62. Muito próximos mesmo: ambos engenheiros, com ideias bem esquerdistas quase iguais, ele do PTB, eu do PSB, e ambos muito amigos de um terceiro grande brasileiro, Julio Cesar Leite, que nos apresentou.
Poucos dias depois do golpe, com notícias terroristas circulando, Rubens almoçava na minha casa em Brasília, quando recebeu, durante o almoço, um telefonema da velha empregada do Bocaiuva Cunha, que chorava e falava com dificuldade, narrando a prisão do Bocaiuva, nosso amigo comum, líder do Governo, com arrombamento da porta e violência de gestos e palavras.
Rubens decidiu, na hora, sair de Brasília. Tinha um avião, pilotava bem, ia para Mato Grosso e, de lá, para o Paraguai ou para a Bolívia. Não queria ser preso. Convidou-me a ir com ele, ali, no momento. Eu, muito propenso, agradeci e recusei por um motivo: tinha medo de avião; inda mais um teco-teco pilotado pelo Rubens.
E entretanto não conseguiu: o avião estava bloqueado e ele, percebendo que ia ser preso, embrenhou-se no cerrado enorme em volta do aeroporto. Perseguido, correu tanto, e tanto tempo, de tarde e de noite, até conseguir chegar à Embaixada da Iugoslávia, que pulou o muro e caiu desmaiado. Passou o dia seguinte exausto e com febre, assustando muito os companheiros, vários, que lá já estavam.
Minutos depois que ele saiu, quando eu arrumava a maleta para ir, também para a Embaixada, chegou em minha casa, vindo do Rio, meu pai, grande e sereno, como me fez bem aquela presença antiga e tranquilizante. Convenceu-me a não me exilar e eu desfiz a maleta; se fosse preso, seria por poucos dias, se me exilasse assumiria uma culpa que não tinha.
Fiquei, graças à solidez de meu pai, e, poucos dias depois, fui visitar o Rubens na Embaixada. Muitos companheiros estavam lá mas eu fui visitar o Rubens. Ele já estava bem, refestelado na grama do jardim, com seu humor natural e, com ele, estava Eunice. Foi quando conheci Eunice, o encanto de Eunice, a bênção de Eunice, seu sorriso doce, sua fala serena. Acabei ficando quase duas horas com eles. Por causa da presença benfazeja de Eunice.
Já falei da coincidência das casas do Leblon: a casa dos meus sogros, a casa de Eliana com a dele, a casa onde foi preso, de onde saiu para ser assassinado. Quando vi no jornal a falsa notícia da fuga dele, compreendi que tinha sido assassinado.
Eunice voltou para São Paulo, estudou direito e lutou muito, anos e anos sem trégua, para descobrir o paradeiro de Rubens. Com sabedoria, sem inúteis gestos da indignação que tinha dentro de si. Vi-a poucas vezes neste longo período mas sabia sempre dela, procurava e tinha notícias, dela e dos filhos que conheci pequenos, a Eliana, xará da minha, sempre mais revoltada, o Marcelo, acidentado, belo escritor que, menino, era chamado de Cacareco pelo pai na carinhosa brincadeira.
Eunice, grande Eunice Paiva, Eunice Rubens Paiva, vi a foto do casal jovem, a bela foto do belo casal jovem, dois grandes brasileiros, que deixaram uma funda marca positiva em nossa História, ele assassinado pela brutalidade dos guerreiros, ela uma mulher iluminada pela sabedoria da luta e do estudo.
Que saudade, que tristeza, que tempos.
Minha geração.
Roberto Saturnino Braga