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Sim, rememorar a ditadura, com o cinema

Carta Maior: para não esquecer e jamais repetir!
publicado 01/04/2019
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Cena de Manhã cinzenta, de Olney São Paulo

De Léa Maria Aarão Reis e Carlos Alberto Mattos, na Carta Maior:

'Ditadura nunca mais' no cinema brasileiro


 As fortes imagens dos rolos de fumaça de incêndios se transformando em ameaçadoras nuvens escuras rolando pelos céus sempre azuis de Brasília no fim do magistral filme documentário de Maria Augusta Ramos, O processo, são os símbolos mais apropriados para marcar os 55 anos do início da ditadura resultante do golpe civil-militar no Brasil que depôs o presidente João Goulart. 

Eram os dias seguintes ao golpe parlamentar, com a cumplicidade das ''elites'' do país, dos tribunais acovardados e da velha mídia brasileira, desfechado contra a presidente Dilma Rousseff e arrancando-a da governança.

Nuvens carregadas que soaram, no filme, e hoje ressoam na realidade como um alerta de perigo cada vez mais real e mais próximo que sem dúvida pode ser afastado por todos nós, o povo organizado, desses restos de democracia ainda existente no país desgovernado, em processo vertiginoso de destruição e à deriva.

Para que nunca mais se repita a ditadura no Brasil, lembrança de sofrimento e dor para os mais idosos; e para que não seja esquecida - ou desconhecida pelos mais moços, muitos deles nem ainda nascidos no nefasto período -, este 31 de março de hoje é o registro da nossa memória histórica mais vigoroso do que nunca.

É preciso rememorar, sim, capitão.

As prisões, torturas, desaparecimentos, os assassinatos, os estupros (quantos!), as traições, perseguições, espionagem, os atentados, a crueldade contra crianças, o terrorismo de estado e o crime de lesa pátria, de traição à democracia brasileira.

Vamos rememorar, como solicita o capitão, porém purgando esse tenebroso passado para podermos seguir adiante, livres de uma tutela desqualificada e da guarda militar que se espreguiça, preparada para reentrar em cena.

Para tal, Carta Maior selecionou alguns dos mais expressivos filmes sobre o golpe e a ditadura de 1964 (CLIQUE AQUI PARA VER). Realizados por mulheres e homens cineastas brasileiros dedicados ao gênero do documentário, os que fortalecem e afirmam o cinema nacional apesar de todas as imensas dificuldades que enfrentam, alguns desses trabalhos podem ser revisitados neste fim de semana.

Aqui, fornecemos as indicações.

O crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, especialista em docs, auxiliou na tarefa de pesquisa e forneceu sugestões preciosas.

Como a marca simbólica da nossa seleção, abaixo o texto do cineasta, roteirista, poeta e professor de literatura e cinema, o cearense Nirton Venâncio, lembrando Manhã cinzenta*, documentário pouco conhecido do baiano Olney São Paulo, morto prematuramente em 1979, aos 41 anos, pela devastação que seu organismo sofreu, na prisão dos militares onde foi torturado sistematicamente durante doze dias. Filmava manifestações de rua, em 68.

A Manhã Cinzenta de um Cineasta

Nirton Venâncio

O cineasta baiano Olney São Paulo morreu jovem, aos 41 anos, em 1978, de câncer no pulmão. Mas o laudo verdadeiro foi consequência do que sofreu na prisão quando detido pelos militares no final de 1969, por conta de seu filme, Manhã cinzenta,* que teve os negativos e as cópias recolhidas. O então diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Cosme Alves Neto, conseguiu esconder uma cópia, e assim o média-metragem foi exibido no ano seguinte em festivais na Itália, na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes, e premiado no Festival de Oberhausen, Alemanha, em 1972. N.R.: Foi exibido também nos festivais de Pesaro, na Itália e em Viña del Mar.

Misturando poesia, alegoria e ficção-científica, com uma narrativa não linear e ousada, o filme mostra um casal de estudantes que é preso após uma passeata. São torturados e respondem a um inquérito comandado por um robô, em um país fictício da América Latina.

Mesmo tendo como pano de fundo o momento político da época, com cenas gravadas nas ruas durante manifestações estudantis e de trabalhadores, o que motivou a detenção do cineasta foi o fato do filme ter sido exibido durante o vôo de um avião sequestrado pelo MR-8 e desviado para Cuba. Um dos membros era cineclubista, adquiriu uma cópia, e tinha o filme como exemplo de patriotismo.

Olney São Paulo foi acusado pelos militares de ligação com o grupo revolucionário, e como numa situação premonitória do enredo do seu filme, foi torturado durante doze dias. Após ser libertado, muito debilitado, foi internado com pneumonia. Mesmo absolvido pelo Superior Tribunal Militar, em 1972, das acusações de subversão, Olney não se livrou do trauma nem recuperou a saúde.

Vários tributos foram feitos como reconhecimento à história do cineasta. Em 1999, a jornalista Ângela José publicou a biografia Olney São Paulo e a peleja do cinema sertanejo, onde registra a vida do “artista extremamente preocupado em documentar a cultura e a luta do homem brasileiro diante das perspectivas sociais e políticas de sua época”.

Em 2011 o cineasta conterrâneo Henrique Dantas realizou o curta Ser tão cinzento, onde recria diversas passagens desse clássico, com depoimentos de pessoas que participaram da produção do filme e de amigos. Dantas estendeu sua consideração dois anos depois, com o longa Sinais de Cinza – A Peleja de Olney contra o dragão da maldade, um primoroso retrato biográfico, onde convergem as várias formas de visão da filmografia peculiar de Olney, que realizou três longas, três médias e nove curtas, deixando uma considerável influência sobre o cinema político que se faria mais tarde no país.

Glauber Rocha, que o chamava de "mártyr do cinema brasileiro", escreveu em seu livro Revolução do Cinema Novo, 1981: ''Olney é a Metáfora de uma Alegorya. Retirante dos sertões para o litoral – o cineasta foi perseguido, preso e torturado. A Embrafilme não o ajudou, transformando-o no símbolo do censurado e reprimido. Manhã Cinzenta é o grande filmexplosão de 1968 e supera incontestavelmente os delírios pequeno-burgueses dos histéricos udigrudistas (...). Panfleto bárbaro e sofisticado, revolucionário a ponto de provocar prisão, tortura e iniciativa mortal no corpo do Artysta''.

Não há motivos para comemorações no próximo dia 31.

1964 nunca mais outra vez!

*Assista 'Manhã Cinzenta' clicando aqui

**Neste fim de semana alguns cinemas também exibem dois documentários sobre ditaduras. São importantes. O brasileiro e impressionante Pastor Claudio, de Beth Formaggini, e o espanhol O silêncio dos outros, de Almudena Carracedo e Robert Bahar cujo tema é o Pacto do Esquecimento decretado na Espanha pós-Franco, o modelo seguido pela Lei da Anistia brasileira. Ainda hoje fonte de dor, de sofrimento e, principalmente, de impunidade - lá e aqui.

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