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Temer vai privatarizar a Educação

Secretarias Estaduais vão ser reféns das escolas particulares!
publicado 08/11/2016
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O Conversa Afiada reproduz impecável artigo do professor Flavio Sarandy sobre a "reforma Alexandre Frota" do Mendoncinha:



O diabo mora nos detalhes. A MP 746 e a privatização da educação nacional.

O Ministério da Educação (MEC) anunciou que irá concluir a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) até meados de 2017, portanto, já no próximo ano, com as secretarias estaduais de educação. Ênfase e atenção na mensagem: com as secretarias estaduais. Na fase atual de elaboração da BNCC estão previstos seminários organizados pelo Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), apesar do MEC ter anunciado também que o Conselho Nacional de Educação coordenará a discussão; então, a princípio não há qualquer novidade no anúncio. Mas o diabo mora nos detalhes. A medida provisória que trata da reforma do Ensino Médio, MP 746, traz como sujeitos privilegiados para a interlocução o Consed e a Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação) enquanto, a olhos vistos, o Ministério nega qualquer diálogo com os estudantes que ocupam as escolas em todo o país. E o MEC afirma ter pressa: “Faz anos que participamos de seminários em diferentes ambientes para discutir o que fazer com o ensino médio. Temos que fazer uma reforma pesada”; como se de pouca importância fosse o respeito ao processo democrático, ainda que lento e gradual.

Mas a MP 746 não cumprirá seus principais objetivos políticos sem profundas alterações na BNCC, e por isso mesmo devemos ficar atentos com relação aos movimentos que se seguirão nos próximos meses, sobretudo com as articulações com os estados e a base política aliada do governo para a conclusão da Base. Um documento complementa o outro na direção da prevalência dos interesses privatizantes na educação. Em outros termos, a MP 746 apenas pode ser compreendida à luz da PEC 55, da BNCC e da instauração do Estado de Exceção, como vivemos hoje no Brasil. Se oculta na proposta algo ainda mais pernicioso que os seus problemas visíveis, como os relacionados à exclusão de disciplinas: exatamente a entrega praticamente plena da política educacional nacional aos sistemas estaduais de ensino.

Não bastasse o caráter autoritário da reforma como já amplamente observado por movimentos sociais, entidades do setor, especialistas da área e até pelo Ministério Público Federal, baixada via uma medida provisória que desconsidera o acúmulo de debates das organizações representativas do setor e pesquisadores das universidades, que ainda impõe retrocessos, a reforma proposta traz como principal obstáculo a uma educação pública de qualidade o fato da medida fixar em lei a quase absoluta liberdade dos sistemas estaduais em definir praticamente todos os aspectos das políticas de ensino, de interesse nacional.

Não que isso seja alguma novidade: prática habitual, o Ministério da Educação vem delegando aos entes da federação as decisões acerca de diferentes aspectos da política educacional, em nome de um “pacto federativo” que subsumiu até princípios constitucionais e legais à dinâmica política regional, permitindo que os sistemas de ensino estaduais gerissem recursos a serem considerados na lógica distributivista do poder local e submetidos à influência de grupos econômicos.

A novidade, no caso da MP publicada, é o grau de autonomia de decisão dos governos estaduais sobre questões que defendemos serem, a rigor, de ordem nacional e responsabilidade da União. Um exemplo pode ser visto nas alterações à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996) proposta pela MP, como exemplificam o Parágrafo 10 do Art. 26 e o Art. 36, em que se dispõe expressamente a predominância dos sistemas de ensino sobre a Base Nacional Comum Curricular. Ou seja, enfraquece-se a BNCC ante decisões das instâncias estaduais - uma contradição com relação à direção que se vinha tomando com o Plano Nacional de Educação. Observem as expressões que permeiam todo o texto da medida, tais como “a critério dos sistemas de ensino”, “os sistemas de ensino poderão”, além do papel reservado ao Consed e à Undime, e fica evidente que até mesmo a implementação da Base curricular deverá atender as decisões dos governos estaduais.

O que se está propondo, a bem da verdade, é a “pecenização” da BNCC, isto é, a apropriação da Base pela mesma lógica que orientou os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), de triste lembrança. Durante a gestão de Paulo Renato à frente do MEC, durante os governos de FHC, os PCN foram interpretados por gestores públicos da educação como diretrizes acerca de conteúdos e expectativas de aprendizagem (implícitas nos conteúdos), porém não configurados como disciplinas. Os parâmetros, dizia-se, não propõe uma matriz curricular disciplinar, o que é verdade. Isso permitiu que os sistemas estaduais manipulassem as lacunas e ambiguidades de modo a gerir currículos de acordo com interesses regionais, privados e partidários, somente obstados por legislação estadual.

Mas, talvez, seja ainda pior o que se anuncia em cenário próximo: a “pecenização” da BNCC virá sem a indicação de qualquer conteúdo, como havia nos PCN, e possivelmente sem referência a alguns componentes curriculares previstos no artigo 36 da LDB, anulado pela MP 746, como Filosofia e Sociologia (Lei 11.684/2008), e no artigo 26, em que se elimina a redação dada pela Lei 10.639/2003, que previu ensino da História e Cultura Afrobrasileira. Sobre este último aspecto, aliás, surge mais uma ambiguidade, pois a MP 746 não alterou a redação do artigo 26-A, que inclui redação da Lei 11.645/2008, tornando obrigatório o estudo “em todo o currículo escolar” da História e da Cultura Afrobrasileira e Indígena. Recordemos, ainda, que a BNCC será obrigatória somente no primeiro ano do Ensino Médio (contará com 1200 horas para a sua execução), ficando os demais períodos destinados à parte flexível do currículo. São as ambiguidades e as lacunas que permitem dizer que a batalha decisiva se concentrará na implementação da BNCC nos pelos sistemas estaduais de ensino.

No entanto, não somente na BNCC estarão presentes as armadilhas que terão de enfrentar todos os que lutam por uma educação pública progressista e de qualidade. Pois enquanto o MEC seguir deixando aos estados as definições da carga horária mínima para ensino dos componentes curriculares admitidos, ao fim e ao cabo os conteúdos educacionais ainda serão objeto de manipulação por parte de interesses não necessariamente públicos. Historicamente a carga horária das disciplinas tem sido o meio pelo qual as secretarias estaduais de educação anulam a presença de determinados conteúdos, a exemplo de manter um tempo de aula semanal para uma determinada disciplina. Por essa razão que a Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), após consulta ao professor e pesquisador em Direito Público, Julio Pinheiro Faro, defendeu a fixação de carga horária mínima para todos os componentes curriculares obrigatórios do Ensino Médio. A consulta levou, inclusive, à proposição de um projeto de lei para a fixação da carga horária mínima de componentes curriculares obrigatórios do Ensino Médio (PL 3471/2015). Vejamos o que afirmou a análise técnico jurídica do pesquisador consultado, em 20 de março de 2015:

“À União cabe legislar sobre as “normas gerais” referentes ao ensino médio, quer dizer, deve legislar em nível nacional, estabelecendo regras que devem ser observadas uniformemente em todo o território nacional (primeira conclusão, extraída do texto da CRFB88); a União tem competência para legislar sobre o conteúdo mínimo dos componentes curriculares para assegurar uma base comum nacional ou formação básica nacional (segunda conclusão, extraída das constituições subnacionais [e da própria LDB, podemos acrescentar]); a legislação nacional estabelece carga horária e duração mínimas para o ensino médio, devendo-se entender que, como se trata de tempo mínimo, ele deve ser reservado para os componentes curriculares obrigatórios autônomos, de modo que há uma lacuna em estabelecer qual o tempo mínimo específico dedicado a cada um deles (terceira conclusão, extraída da legislação nacional vigente sobre o ensino médio)... É, sim, possível a fixação de carga horária mínima para componentes curriculares autônomos, a qual deve ser observada por todos os entes políticos, desde que presentes, necessariamente, as condições seguintes: seja estabelecida por lei nacional (“normas gerais”); restrinja-se aos componentes curriculares obrigatórios autônomos” (Julio Pinheiro Faro, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e Pesquisador em Direito Público na Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Isso em nada contradiz a ideia de competência concorrente entre a União, os Estados e os Municípios de legislar em matéria educacional, dado que a competência é concorrente porque cada ente pode legislar dentro de sua especificidade, e emitir normas gerais válidas em sua esfera de atuação. A União pode emitir normas gerais para questões nacionais ou federais, isto é, relevantes para a República como Poder Soberano, de observância nacional, ou para a União como ente federado autônomo, de observância federal. Do que decorre que uma legislação nacional sobre carga horária de conteúdos curriculares não causar prejuízo ao “pacto federativo”, como alegam os defensores da medida. Se a União diz qual a carga horária total do segmento de ensino, tem obrigação política de definir a carga horária de cada componente curricular deste.

Obtém-se com a MP 746 um reforço à lógica predatória das secretarias estaduais de educação sobre os recursos da área da educação e anula-se esforços de elaboração de uma política nacional que maximize a equanimidade entre os sistemas e as regiões do país. Ao renunciar competência constitucional e responsabilidade política não somente para a definição do piso nacional docente, mas sobre os conteúdos curriculares, e não somente sobre os conteúdos, porém também sobre a carga horária mínima desses conteúdos, dentre outros parâmetros relevantes da implementação da política educacional (a exemplo dos requisitos de seleção dos profissionais adequados), o Ministério da Educação abandona a condução objetiva da educação pública aos espaços de maior influência das corporações empresariais e de outros interesses privatistas no setor. Não sem motivo a alta nas ações de grupos empresariais da educação quando do anúncio da medida.

A questão do financiamento das Escolas Integrais é exemplar das lacunas inseridas na proposta: diz a MP 746 que a União repassará recursos, via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, para escolas cadastradas e elegíveis segundo critérios da medida “e regulamento”. Mas somente a escolas criadas após a edição da MP, pelo período de quatro anos (e dentre as despesas autorizadas para os repasses, a merenda). Ocorre que a medida não fixa critérios de transparência e controle social sobre os repasses e a execução financeira, não esclarece sobre as garantias desses recursos ante um provável teto de gastos para os próximos 20 anos e não define se o modelo de escola integral deverá ser adotado em todo o território nacional e em qual prazo. Na MP 746, o que falta em accountability sobra em contradição. O MEC já insinuou que serão inicialmente apenas em torno de 5% as escolas de tempo integral em toda a rede nacional. A contar pela Lei de Zipf, corremos o risco da existência de centros de referência em meio a um mar de abandono e precarização. Resta a dúvida se em nível estadual esse programa não será como aquelas obras dedicadas exclusivamente à elevação do capital eleitoral de políticos.

Tal qual a significância estatística, um desses conceitos amorfos que mais dependem da interpretação subjetiva do que de um processo de medição numérica precisa, a significação dos dados de nossa “realidade educacional” é ato político. E como ato político, a significação dos dados numéricos traz como um implícito a decisão política e administrativa sobre a gestão educacional. Vejamos o caso da evasão escolar. No site do ministério da educação da Espanha, encontramos em publicação do dia 02/11/2016 matéria que comemora a baixa na taxa de abandono escolar, com uma queda de 0,6%. Afirma a matéria que se trata da melhor taxa de evasão da história recente, de 19,4% (“la mejor cifra de la historia de España”). No Brasil, um dos motes da reforma é a alegada alta taxa de abandono escolar (10% de evasão, segundo alguns), o que leva a muitos, à esquerda e à direita, a afirmarem o fracasso de nosso Ensino Médio. Observe-se que a variação nos indicadores educacionais entre os países da OCDE é muito alta e entre esses países o Brasil é visto como um exemplo de avanço. Isso não quer dizer que não temos desafios à frente, pois apesar da expansão das matrículas no Ensino Médio regular desde 2000 (atingindo pouco mais de 8 milhões, com leve queda em 2010, para pouco mais de 7 milhões de novas matrículas), os índices de proficiência em Língua Portuguesa e Matemática tem apresentado queda desde 1990 (segundo análise de José Roberto da Silva Rodrigues, em tese de doutorado defendida em 2011 na PUC – RJ: “Jovens, gestores e escolas fora de lugar? Geografias de oportunidades educacionais do Ensino Médio na cidade do Rio de Janeiro”). Mas seriam esses índices resultado de um currículo mal formulado?

Outra ambiguidade patente da reforma é quanto à flexibilização curricular, tida por alguns como “o ponto positivo da medida”. O argumento recorrente do que é apontado como um dos principais problemas do Ensino Médio é o currículo inchado. Mas a experiência internacional demonstra o grau de variação do número de componentes curriculares no segmento de ensino. Em breve e simples pesquisa em sites de alguns países europeus pode-se verificar uma variação entre 8 e 18 componentes curriculares, em diferentes cursos e modalidades de organização curricular e itinerários acadêmicos. Trata-se, o argumento do currículo inchado, de raciocínio tão curioso quanto equivocado à medida que relaciona a evasão (sem referência a possíveis condicionantes externos à escola) com ensino desmotivante (“currículo monótono”) e necessidade de reforma curricular. A dificuldade é que a maior parte dos argumentos do discurso educacional dominante se apresenta como “progressita”, sendo difícil perceber neles as armadilhes que escondem. Mas, o diabo mora nos detalhes.

Em “O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas”. Michael Young nos alerta sobre a distinção necessária e desejável entre o que é de ordem pedagógica, como a questão da motivação e sua relação com práticas de ensino, e o que é da ordem curricular propriamente dita. Ainda que o currículo seja um híbrido cultural, compreendido como resignificado também na própria prática docente, fica a questão se é justificável por parte de governos alterar uma matriz curricular com base no argumento que inserindo, excluindo ou reorganizando componentes e conteúdos se alcançará o fim almejado, tornar a escola atraente ao estudante.

Precisamente porque um currículo é resignificado pela prática docente, por sua vez esta também atualizada pelos textos e documentos oficiais, que uma reforma curricular deveria iniciar na escola e com os professores e alunos da educação básica. Em outros termos, é possível ensino de qualidade sem escola de qualidade? É possível que o professor, sobre o qual recaem frequentemente acusações de baixa qualidade em formação e desempenho, exerça um ofício de qualidade em escola precarizada em quase todos os demais aspectos? O professor, sendo professor em situação, não exerce sua prática senão em condições concretas, incluindo-se nisso infraestrutura, recursos e tempos de qualidade. Uma verdadeira reforma educacional com vistas a um ensino digno aos filhos de nossa sociedade poderia se dar em investimentos materiais e simbólicos massivos nas escolas, a começar pelo Ministro da Educação visitando as instituições de ensino para ouvir e dialogar e, sobretudo, ouvir os estudantes. Afirmar o currículo inchado, pura e simplesmente, é uma falácia. Um reforma educacional que seja meramente reforma curricular e não construção coletiva e democrática de uma nova escola, outra falácia.

Como pode um currículo que se propõe organizado em cinco áreas, porém para o qual a implementação e oferta das áreas não seja obrigatória, como dispõe a MP 746, pois que os sistemas de ensino poderão ofertar apenas uma das áreas de conhecimento conforme seus critérios, ser avaliado como positivo e garantidor da autonomia do estudante? Como podemos dizer da autonomia do estudante em relação à escolha de seu itinerário acadêmico se o itinerário for reduzido a uma ou duas possibilidades? Seria a flexibilidade curricular vendida pelos defensores da MP 746 a condição real da autonomia estudantil? A contar pela repressão às ocupações das escolas, podemos dizer que a autonomia do estudante que se deseja é aquela fixada em lei, tutelada pelo Estado e definida discursivamente pelo saber especialista. A autoridade exclusiva sobre a autonomia que se alega oferecer ao estudante é a autonomia da autoridade externa. É tudo, menos autonomia do estudante. Mas a heteronomia não produz autonomia. É hora das comunidades, mães e pais, universidades e associações científicas, sindicatos de professores, movimentos sociais e conselhos tutelares se envolverem na defesa dos estudantes que se manifestam e no debate sobre a escola que se deseja.

Quando o MEC abandona às secretarias estaduais, espaços de maior negociação e influência dos interesses privatistas em educação, as decisões mais relevantes da política nacional em educação, podemos esperar que a sociedade brasileira arcará com a precarização de suas escolas mesmo num cenário sem cortes nos gastos sociais. O prejuízo poderá ser calculado e será distribuído por uma geração inteira, ou mais. Portanto, a batalha deverá ser travada justamente em nível regional e estadual, para onde se destina atualmente o locus decisório, apontando a necessidade de um novo pacto federativo em termos de política educacional; um debate que deveria obrigatoriamente envolver, com poder decisório, docentes e discentes. E o impasse gerado pelo Ministro da Educação, Mendonça Filho, ao se recusar a dialogar com os estudantes e ao fechar os olhos para a crescente violência policial na repressão das legítimas ocupações das escolas e universidades, não contribui para evitar o cenário desastroso que se avizinha.

Flávio Sarandy é professor de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro fundador da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS).