Verdade e reparação para os jovens da APML que a Ditadura matou!
(Reprodução/O Cafezinho)
Por Marluce Moura*:
Eduardo Collier, 25 anos, pernambucano, Fernando Santa Cruz, 26 anos, pernambucano, Gildo Macedo Lacerda, 24 anos, mineiro, Honestino Guimarães, 25 anos, goiano, Humberto Câmara, 26 anos, paraibano, José Carlos Novais da Matta Machado, 27 anos, mineiro e, Paulo Wright, 40 anos, catarinense, cidadão brasileiro e norte-americano, depois de sequestrados por agentes da repressão de um estado terrorista, foram todos brutalmente assassinados entre setembro de 1973 e fevereiro de 1974. Eram militantes da Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil (APML) e originários do Movimento Estudantil, à exceção de Paulo Wright, sociólogo, operário e membro da Igreja Prebisteriana.
Após matá-los, em todos os casos sob torturas monstruosas, a ditadura brasileira ocultou os corpos e simplesmente calou sobre o fim dado a essas pessoas que estavam sob a guarda e responsabilidade do Estado, lançando-as na cruel categoria de desaparecidos políticos. Num desses casos, o das mortes de Gildo Macedo Lacerda e José Carlos Matta Machado em dependências do Exército em Recife, criou e difundiu por todos os veículos de comunicação do país, incluindo a Rede Globo em seu Jornal Nacional, em 1º de novembro de 1973, uma versão rocambolesca de um tiroteio na esquina da Avenida Caxangá com a General Polidoro, onde ambos teriam sido abatidos por um terceiro companheiro com quem teriam um ponto. Queria, assim, introduzir sub-repticiamente a ideia de que Paulo Wright, cujo assassinato também não assumiria, matara os companheiros e fugira.
Entre todos esses jovens, somente o corpo de José Carlos Mata Machado foi devolvido à família, num caixão lacrado, em função do clamor nacional e internacional que se levantou imediatamente após a notícia do que adiante chamaríamos de “Teatro da Avenida Caxangá”. Pressionada por figuras eminentes, a ditadura cedeu. Em relação aos demais, entretanto, os esforços incansáveis das famílias para ter o direito humano mínimo de enterrar seus mortos, por meses, anos, décadas, foram em vão.
Os atestados de óbito não foram emitidos, mesmo quando as famílias obtiveram por sua busca infindável os laudos de IML que davam conta das lacerações, rupturas de órgãos internos, ferimentos transfixantes com objetos perfuro-cortantes, palavreado que indicava as torturas abjetas e os tiros que mataram seus entes queridos. Certidões de nascimento de filhos nascidos após o assassinato dos jovens não puderam inscrever de pronto o nome do pai porque não havia o pai para efetuar o registro nem comprovação oficial de sua morte – e a palavra da mãe nunca bastou.
Nenhum desses jovens foi justiçado por companheiros – Bolsonaro mente. Foi o Estado brasileiro que os sequestrou, torturou, assassinou em suas dependências, e em determinado momento o Estado brasileiro pediu desculpas por isso. Nenhum desses jovens era um terrorista sanguinário. Eram jovens idealistas, opositores de um regime brutal, que lutavam com ideias e a resistência possível dentro de uma realidade sufocante pela liberdade e pela reconquista da democracia. Eles sequer tinham armas – Bolsonaro, que entrou no Exército justamente nesse ano aterrorizante de 1973, mente de novo.
A Ação Popular Marxista-Leninista (APML) era um partido da chamada esquerda revolucionária que vai se constituindo no Brasil a partir dos anos 1960. Originária da esquerda católica, com uma base de estudantes e operários, terá também uma vertente protestante, e já em seu documento fundador, de 1963, explicitará sua opção pelo socialismo. À medida que a ditadura de 1964-1985 radicaliza seu combate contra todas as forças progressistas do país, o partido reorienta-se por uma visão marxista e inclina-se por uma prática política de fundamento maoista. Segue assim até que uma crescente luta interna em torno da definição do caráter da sociedade brasileira e dos melhores caminhos para desenvolvê-la no sentido da igualdade e da justiça social alcança seu auge em 1972 e levará grande parte da APML, em janeiro de 1973, a fundir-se com o Partido Comunista do Brasil (PC do B) -- então já empenhado na Guerrilha do Araguaia como um ponto de partida para a derrubada da ditadura.
Os jovens mortos no contexto da Operação Cacau, cujos detalhes, além da biografia de todos eles (à exceção de Honestino Guimarães), estão bem descritos no relatório final da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco (páginas 362 a 405), compunham a chamada ala esquerda da APML, justamente o grupo que não aceitou a fusão com o PCdo B e a adesão à Guerrilha do Araguaia. Àquela altura esse grupo entendia que o Brasil era uma sociedade extremamente complexa, movida por um sistema capitalista em desenvolvimento, ainda que periférico e dependente, que exigiria novas formas de luta, legais e parlamentares inclusive, para a derrubada da ditadura e a construção da democracia, tendo no horizonte o socialismo. Era com esse olhar que mantinha conversações com outros grupos políticos de esquerda.
Fragilizada e desarticulada, a esquerda de AP foi presa fácil dos agentes da repressão quando eles conseguiram mapear a localização de todos os dirigentes do grupo. Cada um deles, além de muitos militantes, foi sequestrado na rua, em plena luz do dia, com a tática de um cerco rápido, encapuzamento e condução em automóveis com placas falsas a uma das instalações da repressão. Não puderam esboçar qualquer reação e a partir desse momento de sequestro estavam sob responsabilidade do Estado.
Em São Paulo, em 5 de setembro de 1973, foi sequestrado Paulo Stuart Wright e conduzido para o DOI-CODI do II Exército, em Recife. No Rio de Janeiro, em 8 de outubro de 1973, foi preso Humberto Câmara e as informações sobre a data e local de sua morte permanecem contraditórias: o relatório da Marinha que integra os documentos da Comissão de Pernambuco estabelece que a morte se deu em outubro de 1973 e o do Exército informa que ele estava no DOI-CODI de Recife em julho de 1974. Também no Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 1973, foi sequestrado Honestino Guimarães. Em Salvador, em 22 de outubro de 1973, foi sequestrado e levado para a Superintendência da Polícia Federal Gildo Macedo Lacerda, conduzido no dia seguinte para o Quartel do Barbalho, na mesma cidade e, no dia 25, para o DOI-CODI, em Recife, onde foi morto em 28 de outubro de 1973. Em São Paulo, em 23 de outubro de 1973, foi sequestrado José Carlos Novaes da Matta Machado, conduzido para o DOI-CODI de Recife, onde foi morto em 28 de outubro de 1973. Em 23 de fevereiro de 1974 foram sequestrados, no Rio de Janeiro, Eduardo Collier Filho e Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira.
Os familiares desses jovens idealistas e libertários e a sociedade brasileira como um todo precisam conhecer as circunstâncias detalhadas do sequestro, morte e ocultação de seus corpos. Precisam da devolução de seus restos mortais às famílias imersas num luto que não fecha. As famílias exigem respeito à sua dor e a estrita observação a seu direito básico de enterrar seus mortos.
*Mariluce Moura é jornalista. Foi militante da APML, é viúva de Gildo Macedo Lacerda, foi presa grávida da filha de ambos, Tessa Moura Lacerda
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