A recessão vai 'curar' o Brasil ?
O Conversa Afiada reproduz artigo de Saul Leblon, extraído da Carta Maior:
A recessão vai 'curar' o Brasil?
A elevação da Selic em mais meio ponto custará outros R$ 6 bilhões em juros . É um exemplo do remédio para consertar a perna da girafa que quebra seu pescoço.
por: Saul Leblon
O segundo governo Dilma começou há 21 dias.
Há vinte, ele se dedica integralmente ao propósito de convencer os mercados (financeiros) e o setor produtivo de que o Brasil tem futuro.
Dito assim parece trivial.
O Brasil enfrenta desequilíbrios intrínsecos à luta pelo desenvolvimento sob a hegemonia do capital financeiro globalizado.
Mas o faz do alto da quinta maior extensão territorial do planeta.
Praticamente todo o seu território é habitável, nele vivem mais de 200 milhões de pessoas; a economia formal inclui 90 milhões de assalariados; a renda per capita vinha crescendo acima de 2% ao ano, em média; desse conjunto brotou um mercado de consumo de massa que abrange 53% da população.
A engrenagem tem um encontro marcado com um pico de investimentos em infraestrutura entre 2015 e 2017 –algo da ordem de R$ 300 bilhões. Uma espiral de produção de petróleo extraído das maiores reservas descobertas no século XXI vai dobrar a oferta nacional em cinco anos.
O pré-sal reúne escala e tecnologia que lhe conferem viabilidade mesmo quando o xisto norte-americano jogar a toalha.
Em um planeta açoitado por uma crise de demanda, com o hálito gelado da deflação soprando o cangote das principais economias ricas, um aparato com essas características, autossuficiente em alimentos e minerais, faria inveja a boa parte das nações.
Mas a elite brasileira decidiu que o Brasil é uma girafa de pé quebrado.
-De que adianta uma girafa de pé quebrado, pergunta, enquanto se prepara para ‘ajustar’ o pescoço com um facão.
O aparato midiático, que fala em nome dos funileiros de girafas, exige e aplaude medidas que agravam os desequilíbrios apontados como impeditivos ao investimento brasileiro.
Onde é mais importante aplicar os recursos fiscais escassos do país?
No pagamento de juros cada vez mais abusivos aos rentistas, como decidiu o Banco Central nesta 4ª feira ao elevar a Selic de estratosféricos 11,75% para 12,25%?
Ou na pavimentação acomodatícia de um chão firme para o emprego e o investimento industrial?
A elevação da Selic em mais meio ponto nesta 4ª feira custará mais R$ 6 bilhões em juros ao país.
É um exemplo do remédio para ‘consertar’ a perna da girafa que quebra o seu pescoço.
Adicione-se ao picadinho em marcha, o corte de salvaguardas trabalhistas e sociais, como o seguro desemprego e a elevação do custo do credito ao consumo, que inibe a demanda e, por tabela, fulmina o investimento.
O mais notável, porém, é o que vem em seguida.
Apesar do adiantado estado de implantação do tratamento –que já somariam 1% do 1,2% de arrocho fiscal almejado-- as sondagens são implacáveis: pessimismo empresarial está em alta; as intenções de investimento em baixa.
Um acúmulo de desequilíbrios macroeconômicos explica uma parte dos braços cruzados do capital diante das urgências do país.
Um exemplo ostentao carimbo consensual à esquerda e à direita: o câmbio valorizado.
Nos últimos dez anos, a demanda brasileira por manufaturados criou um milhão de empregos –na China, graças à valorização do Real.
O déficit comercial da indústria somou meio trilhão de dólares nos últimos 15 anos.
Nas últimas três décadas, de 1982 a 2012, a participação da indústria no PIB recuou quase 13%.
Em vez de investir, fabricantes trocaram as máquinas por guias de importação.
Ou venderam sua fatia do mercado local aos fornecedores externos.
Uma parte do capital apurado foi para o mercado financeiro; a outra nem ingressou aqui, desembarcando direto em paraísos fiscais.
A elite brasileira é detentora da quarta maior fortuna global depositada nesses abrigos do dinheiro frio.
Subjacente ao desmonte industrial há uma mutação ideológica.
Os que renunciam à industrialização abraçam o ideário oposto: filiam-se ao partido rentista.
São os novos corneteiros do juro alto.
O conjunto explica uma parte dos impasses de um governo que se propõe a fazer uma aliança de desenvolvimento com aliados que bateram em retirada.
Não se trata de teoria conspiratória, é um pedaço da história do Brasil dos dias que correm.
Quem vê no capitalismo apenas um sistema econômico, não a dominação política intrínseca a sua encarnação social, petrifica-se diante desse paradoxo.
Quando o governo destina receita para fomentar o pleno emprego (o seguro desemprego é uma forma de sustentar o mercado de trabalho), é acusado de gastança fiscal.
Quando corta despesas e a economia é destinada ao pagamento de juros, é virtuoso e austero.
Certamente há distorções a corrigir.
Desonerações salariais sem garantia legal de manutenção do emprego semearam o cinismo patronal.
Caso das montadoras: depois de embolsarem R$ 12 bi em renúncia fiscal, demitiram 12,4 mil trabalhadores em 2014. Só não acrescentaram mais 800 cabeças ao patíbulo, agora, porque uma greve de dez dias obrigou a Volks a rever a decisão.
A coagulação rentista da sociedade, com uma elite perfeitamente integrada ao circuito da alta finança global, subtrai à democracia os instrumentos para dar ao investimento sua finalidade social.
O resultado é uma corrosão profunda dos laços da elite com o país.
O economista Thomas Piketty, autor do elogiado ‘O capital no século XXI’, demonstra como a regressividade rentista está promovendo uma mutação em nosso tempo.
Faz parte dela o ‘murchamento’ produtivo, coroado por uma desigualdade crescente e hereditária, quase um atributo biológico.
Ganhos financeiros sempre superiores ao crescimento médio do PIB deslocam à cepa dos rentista fatias progressivamente mais gordas da riqueza social.
Cristaliza-se uma oligarquia aleitada na teta dos juros.
Atender a demanda dessa casta torna ainda mais remoto o fim que se alega perseguir: a retomada do investimento produtivo.
Pior que isso.
A maximização do retorno financeiro, ao lado do arrocho sobre a produção e o consumo, contamina todas as dimensões do cálculo econômico submetendo o investimento já existente aos padrões de retorno da ganância rentista.
Pressionados a entregar fatias crescentes do lucro aos acionistas, dos quais dependem em última instância no cargo, os ‘managers’ corporativos atendem à ‘república dos dividendos’ em detrimento do lucro retido para investimento.
Um exemplo do quanto isso custa à sociedade?
A gloriosa gestão tucana da Sabesp.
Eleita como uma das preferidas dos acionistas estrangeiros, ela privilegiou a distribuição de dividendos em prejuízo do investimento na incorporação de novos mananciais.
Saldo: o racionamento de fato no fornecimento de água a uma São Paulo que figura como uma das maiores concentrações urbanas do planeta.
O baixo incremento da produtividade na economia brasileira também guarda relação com a supremacia da lógica financeira.
Qual a margem de manobra do lucro produtivo, se quiser competir com o retorno do dinheiro a juro?
Maximizar a exploração da mão de obra.
No caso brasileiro, esse Intento é incompatível enquanto houver um mercado de trabalho que bordeja o pleno emprego.
Uma coisa é negociar com trabalhadores espremidos em filas de desempregados vendendo-se a qualquer preço.
Outra, fazê-lo em um mercado em que a demanda por mão-de-obra cresceu mais que a população economicamente ativa.
O desafio da luta sindical nos próximos meses será justamente impedir o desmonte dessa fronteira que separa o ganho real de salários da hegemonia absoluta do capital.
Se além de resistir quiser avançar, o passo seguinte é mais audacioso.
No ambiente globalizado, a liberdade de capitais dá ao rentismo um poder imiscível com a indução do investimento para a construção de uma democracia social.
Controlar a liberdade de capitais está para os trabalhadores assim como destruir o pleno emprego para o capital.
No limite, a receita conservadora só se viabiliza integralmente com o esfarelamento do estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da gestão da economia.
A marcha dessa radicalização na Europa coleciona manifestações mórbidas que não deveriam ser encaradas como um folclore distante.
A tragédia recente em Paris e as eleições gregas do próximo domingo constituem marcadores históricos dessa polarização global.
Vivemos um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento não são realidades contraditórias.
Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.
Essa moldura histórica magnifica a importância da Política Nacional de Participação Social e da regulação da mídia que ressoam na mesa do segundo governo Dilma.Para que tenham peso nas grandes escolhas da encruzilhada brasileira é crucial que o governo não se satisfaça em tê-las apenas como um aceno de participação e um ornamento de democracia.