Neoliberalismo não tirou o Brasil da crise
Arte: revista Piauí
No Estadão, artigo do professor de sociologia da EAESP-FGV Daniel Pereira Andrade - Saiu o PIB de 2019: o resultado foi de 1,1%, frustrando mais uma vez a expectativa dos analistas de mercado, que haviam previsto crescimento de 2,5%. A mesma decepção já havia ocorrido em 2018, com um PIB de 1,3% contrariando a previsão de 2,7%. Em 2017, o resultado ficou em magro 1%. Como alguns analistas já apontaram, trata-se da retomada econômica mais lenta da história do país após um período de recessão. Essa situação coloca uma questão óbvia, mas que tem sido sistematicamente evitada: o modelo econômico liberal é realmente capaz de entregar os resultados que promete?
No caso brasileiro, é preciso notar que esse modelo vem sendo adotado já desde 2015, quando Dilma deu um “cavalo de pau” na política econômica ao substituir o ministro Guido Mantega por Joaquim Levy. A política econômica foi continuada e aprofundada no governo Temer sob o comando de Henrique Meirelles e finalmente foi radicalizada no governo Bolsonaro com o “superministro” Paulo Guedes. Ao longo desse tempo, a promessa inicial de um ajuste fiscal inconveniente e passageiro converteu-se depois em uma virtude e acabou consagrada como um projeto “liberal-democrata” de país. Após o impeachment, não faltou apoio do Congresso, do mercado e da imprensa às medidas, criando um verdadeiro céu de brigadeiro para o “dream team” de Meirelles e para Guedes. As equipes econômicas foram inclusive blindadas no debate público dos escândalos políticos proporcionados pelo Executivo, tanto nos episódios de corrupção de Temer quanto nos de conflito de Bolsonaro. Mesmo nesse último caso, o Congresso assumiu o protagonismo na condução da agenda de reformas. E elas foram sistematicamente aprovadas, como a mais radical reforma trabalhista desde a promulgação da CLT, a PEC do teto dos gastos, a reforma da previdência, a PEC da liberdade econômica e, ao que tudo indica, muito em breve, as reformas tributária e administrativa e a autonomia do Banco Central.
A promessa, no entanto, de entregar uma economia pujante não se realizou. Além de o crescimento ser pífio, a reforma trabalhista não gerou os empregos nem o aumento da formalidade que prometia. Diante do fracasso, as culpas começaram a ser distribuídas. Mas, ao contrário do que se fazia insistentemente com a “nova matriz econômica” do governo Dilma, nenhuma responsabilidade tem sido atribuída à política econômica liberal. A culpa é sempre atribuída aos outros: aos presidentes controversos, aos deputados e senadores corruptos, aos funcionários públicos “parasitas”, à eterna herança petista e por aí vai.
É curioso notar que os economistas liberais, que sempre louvam a responsabilidade individual no mercado, nunca se responsabilizam pelos resultados das políticas econômicas que defendem. Não se vê, da parte dos economistas ortodoxos, nenhuma autocrítica, salvo raríssimas exceções. Suas teorias sobre o funcionamento dos mercados autorregulados e eficientes nunca são questionadas. Para os neoliberais, se a economia não funciona como o previsto, não é porque seus modelos lógico-dedutivos não são capazes de explicar a realidade, mas, inversamente, é porque a realidade política e social está atrapalhando o funcionando idealmente previsto do mercado. Invertem assim a lógica científica ao atribuir ao mundo, e não às suas teorias, o problema. Mesmo não havendo evidências de que reformas trabalhistas gerem empregos ou mesmo que as evidências disponíveis mostrem que políticas de austeridade geram contração ao invés de expansão econômica, os fatos do mundo real são ignorados em nome de seus modelos matemáticos. Os economistas ortodoxos “confundem as coisas da lógica com a lógica das coisas”, já advertia Pierre Bourdieu.
Ao acusar o mundo pelas falhas no funcionamento desse mercado ideal que só existe em suas cabeças, eles podem propor a radicalização da mesma política econômica como solução para os problemas que ela mesma cria. Sugerem mesmo a consolidação nas leis e na Constituição da política econômica liberal de modo a blindá-la das pressões da sociedade e das interferências políticas dos governantes eleitos, procurando construir na prática algo que só existe em suas teorias: um mundo econômico puro apartado da realidade social e política.
Mas é preciso perguntar, como forma de conclusão, se o problema dos economistas liberais se resume à sua teimosia epistemológica ou se há outro estímulo para que sigam persistindo em seus modelos cujas previsões não se realizam. É possível questionar, por exemplo, se a falta de crescimento afeta a todos da mesma maneira, se a política econômica não está favorecendo certos grupos em detrimento da maioria e se, nesse sentido, os próprios economistas de mercado não estão sendo beneficiados pelos erros que insistem em cometer. Afinal, quando não se paga a conta dos próprios equívocos, mas antes se é recompensado por eles, é fácil seguir errando adiante.