Qual leniência?
Querem acabar com o Capitalismo nacional, Dr. Moro?
publicado
28/07/2017
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O Conversa Afiada reproduz artigo de Valdir Simão e Walfrido Warde Jr., no PiG cheiroso:
A Lei Anticorrupção é dura e tem sido aplicada com rigor. Obriga as empresas, não só aquelas que lesaram a administração, mas também as beneficiadas, sem participação direta no ilícito, a pagar pesadas indenização e multa.
A legislação que regula licitações e contratos administrativos impõe outra grave punição: a declaração de inidoneidade e, com ela, a proibição de contratar com o poder público. Para aquelas empresas que vivem de contratos com o Estado, isso equivale à pena de morte.
É duro, mas é justo. A postura que se espera do Estado no combate à corrupção também é essa. O castigo deve ser pesado o bastante para ressarcir os cofres públicos, proteger a administração e, sobretudo, ensinar os malfeitores - atuais ou potenciais - que o crime não compensa. O rigor da lei e da sua aplicação é essencial para desestimular empresários e executivos a seduzir funcionários públicos - ou se deixar seduzir por eles.
Mas o propósito do Estado não se resume a aplicar punições, sobretudo quando a pena produz efeitos adversos no campo econômico. Punir empresas significa, em última análise, descartar riqueza. As empresas representam um interesse em si. Geram receita, pagam impostos, criam empregos e avançam o desenvolvimento do país. Quando lucram e expandem seus negócios, estimulam concorrência, com o ingresso de agentes nos mercados. É preciso que tenham sucesso para que a economia do país cresça.
O legislador brasileiro sabia disso e teve o bom senso de evitar que o combate à corrupção representasse a morte das empresas e a desarticulação da economia nacional. Por isso, inseriu na Lei Anticorrupção uma válvula de escape, uma oportunidade de abrandamento dessas pesadas punições. É o acordo de leniência, que não se confunde com a delação premiada. A delação (ou colaboração) premiada se destina às pessoas físicas, enquanto a leniência deve ser empregada entre as empresas.
A leniência é um caminho de sobrevivência para as empresas que praticaram atos de corrupção ou que deles se beneficiaram. É uma solução de continuidade, para preservar empregos, contratos e todo o tipo de interesse legítimo que gira no entorno de uma empresa, mesmo que envolvida com corrupção. É também um incentivo. A leniência alinha os interesses da empresa aos do Estado. Aquelas empresas que querem sobreviver devem cooperar, devem revelar, sem reservas, todos os atos ilícitos que praticaram, de que têm prova, assim como quais foram os seus autores e partícipes.
É um mecanismo pragmático, cuja utilidade é evidente. Resguarda o papel punitivo e disciplinador do Estado, amplia a sua capacidade de investigação - uma vez que estimula a cooperação do particular - e, ao mesmo tempo, preserva as empresas e a economia do país. A força da punição é compensada (aliviada) pela leniência mediante colaboração.
O problema é que a punição da corrupção, protagonizada pelo Ministério Público, funciona bem, mas a leniência, em meio ao que parece uma indefinição de competências institucionais, não.
As empresas não sabem com quem falar.
Muitos acordos, nos quais empresas prometeram colaboração e assumiram o dever de pagar indenização e multas ao Estado, foram celebrados com o Ministério Público.
Esses acordos desconsideram que, no âmbito federal, por exemplo, a Lei Anticorrupção atribui ao Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) a competência para celebrar os acordos de leniência. Também não observam, com frequência, as atribuições de outros importantes órgãos de controle do Estado, à exemplo da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
O resultado é que a pressão diminui de um lado, mas aumenta de outro. A empresa que celebra acordo com o Ministério Público não se livra da pesada mão do Estado; pode, independentemente desse acordo, ser declarada inidônea pela CGU ou pelo TCU. A indenização e a multa podem ser revistas e aumentadas. Quando a empresa se convence de que se livrou de uma ação de improbidade ou de qualquer outra medida judicial proposta pelo Ministério Público, descobre que esse não é o entendimento da AGU, que também é competente para ajuizar essas demandas. Pode ainda acreditar que está quites com algum ou todos esses órgãos, e ser condenada por prática anticoncorrencial pelo Cade.
Sem que haja segurança sobre os benefícios da cooperação, não há leniência. Nesse cenário de profunda indefinição, as empresas colaboram, mas, no final, ainda se veem envolvidas com os mesmos problemas. Esse defeito de funcionamento dos acordos de leniência pode comprometer o bom funcionamento do elogiável sistema de pesos e contrapesos engendrado pela Lei Anticorrupção.
Aqui, o insolúvel se resume à busca interminável pelo "moço do outro guichê". Em prol da segurança e da justiça, é indispensável a articulação entre os órgãos da administração pública, para que o combate à corrupção não se transforme em uma disputa por competências, tampouco em uma peregrinação de gabinetes, sob o temor de que o que se combinou com um não valha com os demais.
O impasse arrisca a extinção do capitalismo nacional, enquanto, cegos pela raiva, esquecemos de que sem empresas não há emprego, de que sem emprego não há renda e de que sem renda não há progresso e não há dignidade.
Valdir Moysés Simão é advogado e ex-Ministro-Chefe da Controladoria-Geral da União (CGU).
Walfrido Jorge Warde Junior é advogado e presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).
A legislação que regula licitações e contratos administrativos impõe outra grave punição: a declaração de inidoneidade e, com ela, a proibição de contratar com o poder público. Para aquelas empresas que vivem de contratos com o Estado, isso equivale à pena de morte.
É duro, mas é justo. A postura que se espera do Estado no combate à corrupção também é essa. O castigo deve ser pesado o bastante para ressarcir os cofres públicos, proteger a administração e, sobretudo, ensinar os malfeitores - atuais ou potenciais - que o crime não compensa. O rigor da lei e da sua aplicação é essencial para desestimular empresários e executivos a seduzir funcionários públicos - ou se deixar seduzir por eles.
Mas o propósito do Estado não se resume a aplicar punições, sobretudo quando a pena produz efeitos adversos no campo econômico. Punir empresas significa, em última análise, descartar riqueza. As empresas representam um interesse em si. Geram receita, pagam impostos, criam empregos e avançam o desenvolvimento do país. Quando lucram e expandem seus negócios, estimulam concorrência, com o ingresso de agentes nos mercados. É preciso que tenham sucesso para que a economia do país cresça.
O legislador brasileiro sabia disso e teve o bom senso de evitar que o combate à corrupção representasse a morte das empresas e a desarticulação da economia nacional. Por isso, inseriu na Lei Anticorrupção uma válvula de escape, uma oportunidade de abrandamento dessas pesadas punições. É o acordo de leniência, que não se confunde com a delação premiada. A delação (ou colaboração) premiada se destina às pessoas físicas, enquanto a leniência deve ser empregada entre as empresas.
A leniência é um caminho de sobrevivência para as empresas que praticaram atos de corrupção ou que deles se beneficiaram. É uma solução de continuidade, para preservar empregos, contratos e todo o tipo de interesse legítimo que gira no entorno de uma empresa, mesmo que envolvida com corrupção. É também um incentivo. A leniência alinha os interesses da empresa aos do Estado. Aquelas empresas que querem sobreviver devem cooperar, devem revelar, sem reservas, todos os atos ilícitos que praticaram, de que têm prova, assim como quais foram os seus autores e partícipes.
É um mecanismo pragmático, cuja utilidade é evidente. Resguarda o papel punitivo e disciplinador do Estado, amplia a sua capacidade de investigação - uma vez que estimula a cooperação do particular - e, ao mesmo tempo, preserva as empresas e a economia do país. A força da punição é compensada (aliviada) pela leniência mediante colaboração.
O problema é que a punição da corrupção, protagonizada pelo Ministério Público, funciona bem, mas a leniência, em meio ao que parece uma indefinição de competências institucionais, não.
As empresas não sabem com quem falar.
Muitos acordos, nos quais empresas prometeram colaboração e assumiram o dever de pagar indenização e multas ao Estado, foram celebrados com o Ministério Público.
Esses acordos desconsideram que, no âmbito federal, por exemplo, a Lei Anticorrupção atribui ao Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) a competência para celebrar os acordos de leniência. Também não observam, com frequência, as atribuições de outros importantes órgãos de controle do Estado, à exemplo da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
O resultado é que a pressão diminui de um lado, mas aumenta de outro. A empresa que celebra acordo com o Ministério Público não se livra da pesada mão do Estado; pode, independentemente desse acordo, ser declarada inidônea pela CGU ou pelo TCU. A indenização e a multa podem ser revistas e aumentadas. Quando a empresa se convence de que se livrou de uma ação de improbidade ou de qualquer outra medida judicial proposta pelo Ministério Público, descobre que esse não é o entendimento da AGU, que também é competente para ajuizar essas demandas. Pode ainda acreditar que está quites com algum ou todos esses órgãos, e ser condenada por prática anticoncorrencial pelo Cade.
Sem que haja segurança sobre os benefícios da cooperação, não há leniência. Nesse cenário de profunda indefinição, as empresas colaboram, mas, no final, ainda se veem envolvidas com os mesmos problemas. Esse defeito de funcionamento dos acordos de leniência pode comprometer o bom funcionamento do elogiável sistema de pesos e contrapesos engendrado pela Lei Anticorrupção.
Aqui, o insolúvel se resume à busca interminável pelo "moço do outro guichê". Em prol da segurança e da justiça, é indispensável a articulação entre os órgãos da administração pública, para que o combate à corrupção não se transforme em uma disputa por competências, tampouco em uma peregrinação de gabinetes, sob o temor de que o que se combinou com um não valha com os demais.
O impasse arrisca a extinção do capitalismo nacional, enquanto, cegos pela raiva, esquecemos de que sem empresas não há emprego, de que sem emprego não há renda e de que sem renda não há progresso e não há dignidade.
Valdir Moysés Simão é advogado e ex-Ministro-Chefe da Controladoria-Geral da União (CGU).
Walfrido Jorge Warde Junior é advogado e presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).