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EUA empurram militares para o narcotráfico

Fernandes: a tragédia do México prenuncia a do Brasil
publicado 12/03/2018
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O Conversa Afiada reproduz trechos de artigo de Maria Cristina Fernandes no PiG cheiroso:

A parceria contaminada ao sul do rio Grande


Aos 18 anos, Delfino foi recrutado pelo exército mexicano e alocado como atirador de sua unidade de elite. Dois anos depois, seguiu para combater a guerrilha zapatista em Chiapas. Transferido para uma cidade portuária que recebia carregamentos de cocaína da América do Sul, Delfino conheceu, em uma boate, os chefes do tráfico local. Em 2006, dez anos depois de seu alistamento militar, passaria para o outro lado, recrutado por um dos maiores carteis do narcotráfico.

Identificado apenas com o primeiro nome pelo "The New York Times", que o entrevistou em fevereiro, Delfino disse ter sido recrutado pelo tráfico pela capacidade, adquirida no Exército, de seguir estritamente as regras estabelecidas e pelo treinamento psicológico para enfrentar a guerra. Tornou-se o símbolo dos jovens militares que cruzaram a linha inimiga e hoje servem aos cartéis.

Clones de Delfino ameaçam se proliferar no continente e foi a eles que o novo ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, se referiu quando, em sua única entrevista desde que assumiu o cargo (a "O Estado de S. Paulo"), mencionou o temor de que as Forças Armadas viessem a se contaminar pelo tráfico. Dois dias depois, o mesmo jornal revelaria que ex-militares brasileiros são recrutados como instrutores de traficantes no uso de fuzis, pistolas e granadas.

O paradigma mexicano tornou-se frequente no debate sobre a intervenção no Brasil porque, em dezembro do ano passado, o Congresso daquele país aprovou uma lei de segurança nacional que autoriza o presidente da República a convocar tropas militares para operações domésticas sem autorização parlamentar.

Autor de "Política e Drogas nas Américas: Uma Genealogia do Narcotráfico" (Desatino, 2017) e professor da Universidade Federal Fluminense, Thiago Rodrigues vê semelhanças pontuais entre os dois países. A mais importante delas é a de se tratarem de duas federações em que as polícias locais enfrentam denúncias de corrupção e pacto com o crime. Antes da aprovação da lei que normatizou a federalização da segurança pública sob comando militar, foi criada uma secretaria específica, com status de ministério, a exemplo do que ocorreu no Brasil.

(...) Thiago Rodrigues vê pelo menos duas diferenças em relação ao Brasil. A primeira é que, antes de militares mexicanos de baixa patente começarem a ser recrutados pelo tráfico, havia registro de corrupção entre generais. E a segunda é que o volume de recursos alocado pela DEA para apoiar o combate ao narcotráfico no Brasil tem uma escala muito inferior àquele transferido para o México.

A maior diferença, porém, é aquela que começa a ruir sob o governo Michel Temer: a apropriação do tema pela disputa política do país. Nos países andinos, o vínculo entre narcotráfico e guerrilhas de esquerda fortaleceu aqueles que levaram para o palanque a guerra militarizada contra os zapatistas mexicanos e as Farc colombianas. Mas ambas as guerrilhas foram derrotadas sem que o narcotráfico tenha cessado ao sul do rio Grande.

(...) A participação mais efetiva das Forças Armadas no combate ao narcotráfico não está contemplada na Estratégia Nacional de Defesa. O documento, que é apresentado ao Congresso a cada cinco anos, tem sua última versão estacionada no Congresso desde o ano passado. Bolsista do Instituto Pandiá Calógeras, do Ministério da Defesa, Thiago Rodrigues é categórico em afirmar que, quanto mais poder de polícia as Forças Armadas adquirem, menos chances têm de ver concretizados os projetos que visam a aumentar sua presença na defesa externa do país, como o submarino nuclear.

A convergência dessas pautas faz com que a militarização do combate ao narcotráfico nas favelas esteja longe de ser ponto pacífico nas Forças Armadas. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchengoyen, general que nunca flertou com o antiamericanismo, já expressou publicamente, por exemplo, sua resistência à alienação do controle acionário da Embraer. Criticou, ainda, a adesão do Brasil ao Tratado de Ñão Proliferação de Armas Nucleares citando a nova estratégia americana que abre a perspectiva de uso de armas nucleares contra signatários do TNP.

A intervenção militar no Rio coincide ainda com uma política externa americana que já tornou pública sua simpatia por uma solução armada na Venezuela. A primeira viagem do secretário de Estado (Rex Tillerson) ao continente ignorou o Brasil, que exerceu, até aqui, o papel de principal mediador dos conflitos do país de Nicolás Maduro. A Exxon Mobil, empresa da qual Tillerson foi presidente até assumir o comando da política externa do governo Donald Trump, anunciou, em janeiro deste ano, a descoberta de campos de petróleo na Guiana, o paupérrimo vizinho venezuelano. Numa primeira avaliação, os poços foram estimados em 12 vezes a economia daquele país.

No mesmo discurso em que conclamou a América Latina a perseguir o alinhamento com os Estados Unidos de países como o México e a Colômbia, Tillerson reconheceu os pífios resultados desta parceria no combate ao narcotráfico. Em 2016, informou, a área destinada ao cultivo das folhas de coca atingiram um recorde histórico na Colômbia.

Seu discurso targiversou, no entanto, o principal custo da parceria com o continente. No México, quase onze anos depois da primeira grande operação militar, o balanço é de um confronto sangrento que só rivaliza com as cifras da violência no Brasil e dá, ao combate ao narcotráfico no continente, o título de guerra mais violenta do planeta.

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