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Trump e a China: ah, se o Brasil tivesse vergonha!

Mas, também, com o Careca e o Aloysio 500 mil no Itamaraty...
publicado 17/03/2017
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Pátria Amada.jpg

O Conversa Afiada reproduz do PiG cheiroso afiadíssimo artigo de Alessandro Octaviani,
Professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP​, co-autor do "quem matou JK? os militares!", tema de entrevista imperdível aqui no Conversa Afiada.

Donald Trump em Pequim


No primeiro discurso ao Congresso, o presidente americano Donald Trump foi claro: o "livre comércio" mundial deve ser "justo", eliminando os danos impostos aos EUA pelos tratados internacionais, que teriam feito escorrer pelas mãos 25% dos empregos industriais desde a assinatura do Nafta, 60 mil fábricas desde a entrada da China na OMC e gerado US$ 800 bilhões de déficit na balança comercial, só no ano passado. Ele já encaminhou medidas para retirar o país da negociação do Tratado de Associação Transpacífico (TPP) e busca a construção de mais um pedaço do "muro da vergonha" entre os EUA e o México. E adota retórica beligerante tons acima do polido ex-presidente Obama.

No Brasil, muitos ficaram chocados porque "a pátria do liberalismo" aderiu ao protecionismo.

Trump, entretanto, não é um "revolucionário"; simplesmente revela o óbvio: os EUA trabalham, diuturnamente, na persecução de seus interesses nacionais, com instrumentos uni ou multilaterais. O Omnibus Foreign Trade and Competitiveness Act de 1988 foi uma resposta do governo Reagan à crise na balança comercial; entre os instrumentos criados ou potencializados pelo normativo, constam a Super 301 (que autoriza as "medidas necessárias" para sustar práticas "injustas" ou "discriminatórias" às exportações dos EUA), a Special 301 (que regula a identificação de "países prioritários" no "desrespeito" à propriedade intelectual dos EUA) e o Committee on Foreign Investment in the United States (CFIUS), regulador da aquisição, por investidores estrangeiros, do controle de empresas de capital norte-americano (uma espécie de Cade da soberania econômica dos EUA que, entre 2005 e 2014, analisou 1.095 operações).

Os instrumentos de "defesa comercial" articulam­se aos de "ataque industrial": o bilionário ecossistema estatal de produção e incentivo de inovação tecnológica tem a função de absorver os riscos pesados, por meio, entre outros, 1­ da Darpa (Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas), 2­ do SBIR (Programa de Pesquisa para a Inovação em Pequenas Empresas) ou 3­ da Iniciativa Nacional de Nanotecnologia. Colada aos instrumentos de "defesa comercial" e "ataque industrial", está a principal política externa estadunidense desde a década de 1940: a guerra ­ quente ou fria, organizadora de demanda tecnológica e estabilizadora de preços básicos da economia, como o petróleo. As atuais "Guerras do Petróleo" giram em torno de US$ 5 trilhões.

Trump, como se vê, não é inventor. É usuário. Seu mercantilismo à Colbert não é avesso à alma americana e por isso ele cita Lincoln. Sua política é mera reencarnação, em tom histriônico, de Alexander Hamilton, o primeiro Secretário do Tesouro, rosto da nota de dez dólares e autor dos Reports de defesa da manufatura americana. Trump é mais próximo de Pequim do que supõem os ora perplexos liberais brasileiros, saudosos de um mundo que nunca existiu: o paraíso no qual Estados não atuam na economia, deixando a arena livre para os privados agentes racionais.

As Olimpíadas de 2008, como notou Kissinger, marcaram simbolicamente a autoafirmação chinesa perante o mundo, desdobrando­-se em, pelo menos, três disputas: 1­ - inovação tecnológica, 2­ - moeda e 3­ - retórica bélica, todas definidas nos Planos Quinquenais, sustentadas por trilhões de dólares em investimentos públicos e operadas por extensa malha de empresas e órgãos estatais.

A semelhança entre os Estados Unidos e a China nos meios de defesa de seus projetos nacionais de desenvolvimento é notável: estruturas voltadas para controlar os principais preços de suas economias, gerar tecnologias e atrair renda para seus Estados

A política de inovação tecnológica buscou a mobilização do mercado interno, centrando­-se em setores de alta intensidade, como comunicações, computadores, softwares, semicondutores e energia. Seu atual desenvolvimento alcança a fase de internacionalização, entrando em conflito com outras políticas nacionais (do que dá exemplo o bloqueio operado pelo governo alemão, em fins de 2016, da oferta pública de ações conduzida pela chinesa Grand Chip Investment para aquisição do controle da fabricante de semicondutores alemã Aixtron, bem como a suspensão, atualmente realizada nos países centrais, por diversos órgãos similares ao CFIUS, de investimentos chineses na casa de US$ 40 bilhões).

A internacionalização do yuan está prevista no 13º Plano Quinquenal Chinês e, desde 2014, já decolaram das fronteiras chinesas aproximadamente US$ 260 bilhões, entre empréstimos e financiamentos comerciais. A retórica bélica é legitimadora do "complexo produtivo militar" chinês, tendo sido a grande responsável pela modernização do parque produtivo local. O orçamento militar chinês em 2017 se aproxima de US$ 150 bilhões, agregando demandas tecnológicas e garantindo a estratégia de internacionalização da moeda nacional.

A semelhança entre os EUA e a China a respeito das arraigadas e eficazes estruturas de defesa de seus projetos nacionais de desenvolvimento é notável: estruturas voltadas a 1­ - controlar os principais preços de suas economias, 2­ - gerar tecnologias e atrair renda para seus Estados, 3­ - gerar empregos e legitimidade política e 4­ garantir que as instituições internacionais atendam a seus interesses.

Face a tais desafios, o Brasil notabiliza­se por sua incapacidade de organizar o planejamento de longo prazo e renitente persistência, entre as elites, da crença de que tal quadro protecionista "não existe" ou "não será duradouro".

Para caminhar nesse complexo panorama, o Brasil deve ter capacidade de, pelo menos, reformar 1­ - o sistema de planejamento, 2­ - a capacidade de poupança e investimento (controlando o populismo cambial, associação do consumismo com o rentismo, dizimador da indústria nacional), 3­ - a capacidade de produção de inovação tecnológica, 4­ - a capacidade de escolhas públicas, com um choque de participação cidadã e 5­ - as disparidades de renda e conhecimento.

Tendo em conta as reservas morais do povo brasileiro, é um horizonte alcançável.

Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outros, de "Estudos, Pareceres e Votos de Direito Econômico"

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