O futebol na Globo está com os dias contados
Reprodução Uol
Por Bruno Maia* - Há algum tempo, venho escrevendo (e trabalhando) sobre as transformações que o OTT vai causar no esporte e reforçando para o mercado que isso apenas começa no modelo de transmissões, mas se estende ao negócio como um todo.
(OTT, para quem não sabe, é o modelo tipo Netflix, em que a empresa detentora do conteúdo entrega o serviço diretamente para o usuário, sem intermediários, como as operadoras de TV a cabo)
Os players que serão líderes deste novo método de transmissão de conteúdos vêm de indústrias como telefonia e tecnologia.
Para eles, conteúdo é fim em si e ainda porta de entrada para quase todos os seus infinitos negócios.
A disputa entre Globo e Amazon Prime vem sendo travada sem muito pudor e a recente revelação de que o clube carioca negociaria um patrocínio e uma parceria com a empresa norte-americana só sublinha o que já se desconfiava.
O primeiro passo a repercutir neste sentido, depois da chegada do grupo de Jeff Bezos no Brasil, foi a contratação de Tiago Maranhão, até então apresentador do SporTV.
Profissional em ascensão, merecidamente valorizado à frente de programas do canal, Maranhão surpreendeu admitindo estar abandonando a trajetória no Grupo Globo para liderar o desenvolvimento da assistente virtual Alexa, implementando-a no Brasil e embarcando no mercado de inteligência artificial.
Logo em seguida, o golpe até aqui mais duro: a contratação do então CEO do Globoplay, o português João Mesquita.
A negociação chamou muito a atenção, tanto pela ousadia, quanto pelo fato de, além de se tratar de um renomado profissional, ele levar inevitavelmente consigo as estratégias da poderosa concorrente local. Pra quem não o conhece, Mesquita havia conquistado o posto mais importante do VOD da Globo, depois de ter liderado uma experiência extremamente bem sucedida, conduzindo o Telecine para o mercado on-demand, ao criar e desenvolver os projetos Telecine Play e Telecine On-Demand.
Por sinal, salvo engano, o canal de filmes foi o primeiro a usar o sufixo “Play” no mercado brasileiro de OTT e depois levou todo mundo a reboque.
O sucesso desta empreitada explicou, aos canais de tv por assinatura do país, o caminho que deveria ser feito para a migração de modelo, sem falar no mérito de ter atravessado como um bandeirante a dura barreira inicial que existia na relação com as operadoras de tv paga.
Tudo isso credenciava Mesquita e justificava o peso desta contratação. Só que a Amazon não parou aí.
Em seguida, atacou a Seleção Brasileira, eterna parceira da Globo, e usou o time de Tite para lançar a série “All or Nothing” por aqui, acompanhando com exclusividade os bastidores da conquista da Copa América.
O passo posterior foi negociar os conteúdos “beyond the game” (de bastidores) do Flamengo durante a disputa do Campeonato Mundial.
Agora, ao que se comenta, a relação estaria avançando na ideia de tornar a Amazon a parceira principal do clube carioca, que vive fase de vasto domínio técnico no futebol brasileiro.
Como já descrevi em outras oportunidades, exemplos como o Facebook comprando os direitos da Champions League e WSL, a DAZN entrando no mercado como exibidor exclusivo da Copa Sulamericana e da Série C, são pequenas demonstrações do posicionamento que vem sendo feito pelas empresas de OTT relacionadas a esporte no país.
O prazo que ainda existe até o fim da próxima janela de direitos de transmissões dos principais torneios brasileiros com a Globo - a partir de 2024 - é longo o suficiente para que estas empresas se posicionem e consolidem no mercado nacional.
Este crescimento terá importantes apoios, como o iminente leilão do 5G e a provável alteração da Lei do SeAC (Lei 12.485/2011), em seus artigos 5 e , que ainda é restritiva com o conceito de “propriedade cruzada” entre empresas produtoras de conteúdo e as de telecomunicações - o que vem impedindo, por exemplo, as telefônicas de participarem das negociações por direitos esportivos no país.
Tem ainda a negociação da Lei Geral do Esporte, no Congresso Nacional, que tenta, entre outras coisas, transformar o direito de transmissão de eventos numa propriedade do clube mandante do jogo - o que romperia o modelo atual e empoderaria os grandes clubes, em vez de confederações ou ligas.
Este ponto, porém, deve ter uma resistência maior para alteração imediata, tanto pelos interesses em jogo, quanto pelas consequências perigosas do aumento de desequilíbrio esportivo que poderia causar.
Em muitos países, onde o modelo do mandante ser detentor do direito existe, ele é balanceado pela venda coletiva dos direitos da competição, seja através de uma liga dos clubes, seja por alguma condição legal, cenários que inexistem hoje no país.
O tensionamento da relação do Flamengo com o Grupo Globo pode estar, sim, baseado numa confiança do clube de que terá avanço nas negociações com a Amazon.
Neste caso, a possibilidade de expandir suas transmissões esportivas dentro das plataformas internacionais da empresa norte-americana seria apenas uma das frentes - talvez a mais simbólica e importante.
O Flamengo tem o tempo e o caixa cheio a seu favor. A Amazon, por sua vez, pode ser parceira em dezenas de outros serviços rubro-negros, dado o seu ecossistema de vendas e o de gestão de dados, abrindo caminho para um portifólio bem mais amplo de serviços e aumento de performance de conversão e geração de receitas.
Apesar da frente de conteúdos ser a mais visível a ser atacada - provavelmente dentro da plataforma Amazon Prime -, a marca que tem sido trabalhada pelo grupo de Bezos em ações de patrocínio é a AWS (Amazon Web Service), uma solução complexa de entregas e produtos para gestão de dados na nuvem.
Entre outras iniciativas, a AWS é responsável pelo Next Gen Stats, da NFL, e também patrocinam estatísticas digitais e conteúdos customizados em tempo real para a Bundesliga, em parceria anunciada em janeiro.
Neste contexto, o cenário de bonança financeira do clube carioca revela-se como o mar azul que a Amazon busca para desenvolver esta parceria e dar a ela ares inspiracionais, que contagiem o mercado.
Falta alguém mostrar que existe vida, de verdade, fora da Globo para que a tensão dos outros clubes com a emissora carioca também tenda a aumentar. A Amazon tem tempo e dinheiro para isso.
Serão ainda mais quatro anos até lá e esta discussão complexa entre Flamengo e Globo não deverá ser único episódio deste tipo. Ano passado já vimos Athlético Paranaense e Palmeiras em disputas semelhantes.
Ao partir para uma relação de patrocínio e parceria com um clube de futebol, a se confirmar, a Amazon apresentará um desses novos modelos que costumo citar e que mudarão completamente a indústria do esporte.
O Brasil é um mercado decisivo e relevante nesta expansão e os caminhos para a mudança já foram construídos. Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.
*Jornalista, formado pela PUC-RIO, com EMBA na Berlin School of Creative Leadership.
Diretor de mais de 200 produtos audiovisuais e editoriais.
Antes de fundar a 14, passou por EMI Music, Globonews e Sportv. Colaborou com diversos veículos do país.