O Conversa Afiada reproduz artigo de Mauro Santayana, no JB online:
A atualidade de San Thiago Dantas
por Mauro Santayana
A Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, comemorou, ontem, o centenário de nascimento de San Tiago Dantas. Poucos brasileiros marcaram o seu tempo, com tanta intensidade e tanto talento quanto o advogado, acadêmico, jornalista, militante político e diplomata. Sua trajetória foi de um relâmpago: formado aos 21 anos, pela Faculdade Nacional de Direito, Francisco Clementino de San Thiago Dantas, como muitos de seus companheiros de geração e de inquietude intelectual e política, se tornou ativo militante integralista. Pouco tempo depois, no entanto, entendeu que o caminho não era aquele, e se distanciou do movimento quando foi tentado o putsch de 1938 contra Vargas. San Thiago se revelou excepcional advogado, e, aos 29 anos obteve a cátedra de Direito Civil na faculdade em que se formara. A partir de então tornou-se trabalhador e militante incansável, ao mesmo tempo que construía uma cômoda fortuna pessoal, o que lhe garantia plena independência. Essa independência autorizou-o a ingressar no PTB e a eleger-se deputado federal por Minas Gerais – uma escolha de sua lucidez política.
Sua memória foi evocada por alguns homens que com ele conviveram mais de perto, como Marcílio Marques Moreira, e outros que não tiveram esse privilégio e só o conheceram um pouco à distância, como o Ministro Antonio Patriota, os embaixadores Samuel Pinheiro Guimarães, Gilberto Sabóia e Gelson Fonseca - e o professor Marco Aurélio Garcia. O advogado Adacir Reis, presidente do Instituto San Thiago Dantas só leu suas obras e dele teve testemunhos alheios.
San Thiago foi a síntese dialética de suas contradições, no tempo em que lhe coube viver e influir na vida nacional. Advogado de grandes empresas, não titubeou em defender a justiça social, a partir de um partido de centro-esquerda, como o PTB; não marxista, promoveu o reatamento de relações com a União Soviética; admirador das instituições políticas anglo-americanas, com seu sistema democrático, não titubeou em defender o direito de Cuba à autodeterminação, e foi ferrenho advogado do princípio da não intervenção nos assuntos internos de qualquer nação. Essa sua posição foi destacada pelos oradores de ontem, no Itamaraty. Se estivesse hoje vivo, San Thiago estaria na irrestrita condenação à posição das grandes potências no caso dos paises árabes. O advogado Adacir Reis considerou que San Thiago era a pura razão, e talvez lhe tivesse sido conveniente um pouco mais de emoção.
Conheci-o, não de perto, mas de alguns encontros pessoais, naqueles meses tumultuados de 1961 a 1964. Tive a impressão de que ele racionalizava a emoção, mas não a perdia; controlava-a com o exercício de uma inteligência dominadora. Enfim, vivia sua emoção, ao subordiná-la aos ditados da realidade pragmática. Nele, a escolha política não era a da paixão, mas a da rigorosa inteligência do mundo e de suas possibilidades.
Ao receber, em 1963, o título de “Homem de Visão” do ano – conferido pela Revista Visão, uma das melhores publicações então existentes – San Thiago resumiu o seu ideário político – extremamente atual – nesse trecho:
“Se me fosse dado partir de duas afirmativas, ou posições, para nelas procurar envolver toda a minha conduta de homem público, procuraria reduzi-las a este traçado essencial: a) a certeza de que a sobrevivência da democracia e da liberdade, no mundo moderno, depende de nossa capacidade de estendermos a todo o povo, e não de forma potencial, mas efetiva, os benefícios, hoje reservados a uma classe dominante, dessa liberdade e da própria civilização; b) a certeza de que a continuidade da civilização, com o seu resultado final que é a reconciliação dos homens, depende da nossa capacidade de preservar a paz, substituindo a competição militar entre os povos por técnicas cada vez mais estáveis de cooperação e de convivência, e caminhando para uma integração econômica que nivele as oportunidades, com a rápida eliminação dos resíduos do imperialismo e das rivalidades nacionais”.
San Thiago conduziu a política externa brasileira nos poucos meses que coincidiram com a presença de Tancredo na chefia do Gabinete Parlamentarista. Mas eles foram suficientes para que, retomando a conduta do chanceler Afonso Arinos, ministro de Jânio, defendesse o direito dos cubanos à autodeterminação e, como já anotamos, consumasse o reatamento de relações com Moscou. No caso de Cuba, como lembrou o embaixador Gelson Fonseca no encontro de ontem, ele estava disposto a renunciar ao cargo se lhe exigissem conduta diferente no encontro de Punta del Este, em que negou aprovação à expulsão de Cuba da OEA. Era de tal forma sua determinação que, temendo outra instrução do governo Jango-Tancredo, submetido às pressões pessoais de Kennedy, não atendeu aos telefonemas de ambos, dando instruções a seus auxiliares para que dessem a desculpa de que ele se encontrava em articulações secretas com alguns outros chanceleres. O Brasil perdeu, por um voto, o do Haiti – o da maioria de 2/3 que consumou a expulsão de Cuba, com as conseqüências conhecidas. Naqueles dias circulou uma frase de San Thiago, a de que tanto os Estados Unidos, quanto Cuba, agiam no episódio como adolescentes despreparados, e era preciso que alguém buscasse conduzi-los ao bom senso.
O mais importante do encontro de ontem foi a constatação de que o múltiplo San Thiago – com sua privilegiada e excepcional inteligência e insuperável erudição, e erudição sem mofo – continua sendo uma referência para a construção da sociedade nacional. Ele – e esta foi outra de suas sínteses admiráveis – sabia que a nossa posição no mundo dependia de nossa realização interna, como sociedade desenvolvida, livre e justa. Não há, e ele soube resumir esta verdade, sociedade soberana e livre no conjunto das nações, se seus cidadãos não forem livres e não usufruírem de justiça interna. Uma nação em que parcela de seus cidadãos oprime a maioria, jamais será respeitada no mundo. Retorno ao discurso de San Thiago, de dezembro de 1963 – poucos meses antes de morrer emblematicamente em 7 de setembro de 1964, poucos meses depois do golpe militar:
“Meus senhores, desejava agora, pedindo desculpas pela extensão deste pronunciamento, encerrá-lo com uma renovação de minha inabalável confiança no futuro do nosso país e sobretudo na vitalidade do nosso povo. Penso, de maneira especial, nas classes populares, cujo apoio solicitei e cujo convívio procurei ao ir pedir-lhes, na terra mineira que tanto amo e a que tanto devo, a outorga de confiança de um mandato legislativo.
“Tomei naquele instante uma posição política e partidária, em que continuo a aprofundar minhas raízes, e que era então, como hoje, a expressão de uma convicção sincera na capacidade das nossas classes populares para impulsionarem, no sentido da renovação, da revolução democrática, o curso de nossa história”.