O Conversa Afiada reproduz texto de Maria Inês Nassif, publicado na Carta Maior:
Não se pode imaginar que leis simplificadoras resolvam, por mágica, toda a nossa penúria política, acumulada em períodos autoritários e alimentada por uma elite versada em manipulação do voto do pobre. É hora, é certo, de pensar numa reforma política, mas é bom que se evite que ela sirva a outras finalidades que não o aprofundamento da democracia brasileira.
por Maria Inês Nassif
Durante toda a sua história, o Brasil foi uma sucessão de períodos autoritários intercalados por fases de redemocratização. A instabilidade institucional, aliada à ideia emprestada dos períodos ditatoriais de que o Estado tudo pode, inclusive mudar costumes e culturas, fazem a sociedade trilhar movimentos curiosos em momentos de crise política. Os aparelhos públicos de coerção – justiça, polícia, ministério público e outros órgãos de controle e punição – apenas são considerados eficientes se apresentam imediatamente um culpado e um castigo, uma exigência que, não raro, induz a erros policiais e judiciários. É a expectativa de que as instituições democráticas e os mecanismos legais ganhem a cerelidade própria dos regimes de exceção e um poder semelhante de decidir sobre a vida das pessoas.
A outra deturpação decorrente do passado autoritário é a ideia de que tudo se resolve com uma nova lei. Uma pena mais rigorosa sempre é a solução para tudo. Se ela não resolver, é porque as instituições de controle e punição não foram suficientemente ágeis. Se, depois de algum tempo, se chegar à conclusão de que esse não é necessariamente o problema, a varinha de condão de novos instrumentos legais é acionada, individual ou coletivamente, e preverá punições mais duras.
Não que inexistam imperfeições legais que devam ser resolvidas; e longe está o momento em que as instituições de controle e punição sejam tão perfeitas que insusceptíveis de críticas. O problema é que esse caldo de cultura, não raro, acaba por inibir qualquer diagnóstico mais profundo sobre os reais problemas da democracia brasileira. A discussão meramente formal sobre a lei, e a ideia de que ela tudo resolve, desde que alterada, pode causar grandes frustrações. Falta também absorver a realidade de que as leis têm lado. Não são panaceia para todos os males, nem curam igualmente doenças que acometem um ou outro lado.
Nas páginas de “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Victor Nunes Leal (uma das mais importantes reflexões sobre as origens políticas do Brasil moderno, escrito em 1946 e, atenção editores, esgotado: encontrá-lo, só em exaustivos périplos ao mundo dos sebos e a alto preço), o autor consegue de tal forma entender o debate enviesado sobre o ovo e a galinha da política brasileira que é um exemplo de método e diagnóstico. O detalhado relato do funcionamento da política brasileira nos rincões do poder municipal não o levam à conclusão precipitada de que, se a política municipal é a base da política de favores que sustenta o poder nacional, a solução é destituir o poder do município.
Nunes Leal relata debates ocorridos, ao longo da história republicana, sobre os poderes locais, que resguardaram, desde a monarquia, sua característica de eletividade. O problema não era a assunção ao poder pelo voto, concluiu ele, quando, na Constituinte de 1946, forças conservadoras defendiam o fim da elegibilidade nos municípios e a transformação desses entes federativos em departamentos técnicos, de nomeação pelos governadores. Para derrubar a tese conservadora, o autor historiou em seu livro como, ao longo dos tempos, a solução “técnica” de intervenção nos municípios serviu politicamente aos senhores do momento de forma mais efetiva do que quando os prefeitos eram eleitos. O desequilíbrio, ensinava Nunes Leal, não era dado pela autonomia dos municípios, mas pela ausência dela. O sistema político representava uma aliança de conveniência entre uma oligarquia rural decadente e o poder estadual, e só se mantinha devido à dependência econômica dos municípios aos Estados e ao governo federal.
O entendimento de que a autonomia municipal seria muito mais eficiente para combater relações deletérias entre agentes politicos acabou prevalecendo nas ciências sociais brasileiras e na Constituinte de 1988, que levou isso tão à risca que hoje as partes demandam soluções novas – e efetivamente técnicas – para áreas conurbadas.
Da mesma forma, é preciso tomar cuidado com alguns debates que decorrem das reiteradas crises políticas vividas pelo país. Existe um diagnóstico comum: o quadro partidário brasileiro é deficiente; é alta a taxa de corrupção não apenas nas instituições públicas, mas na sociedade; a política é pouco atrativa para pessoas que efetivamente têm condições de representar politicamente, e com honestidade, uma parcela da população brasileira; existe pouco vínculo orgânico dos partidos com seus representados; a profusão de legendas obriga a convivência de partidos ideológicos com os partidos de negócios ou de aluguel; o poder econômico prevalece… A lista é longa. Não se pode, contudo, imaginar que leis simplificadoras resolvam, por mágica, toda a nossa penúria política, acumulada em períodos autoritários e alimentada por uma elite versada em manipulação do voto do pobre.
É hora, é certo, de pensar numa reforma política, mas é bom que se evite que ela sirva a outras finalidades que não o aprofundamento da democracia brasileira. É impensável que, num debate como esse, se coloque na mesa o voto majoritário para a escolha de integrantes do Legislativo, sob a justificativa que distritos eleitorais menores podem ajudar os eleitores a fiscalizar os eleitos. O voto proporcional é o único que abre espaço, nas democracias representativas, às minorias partidárias.
Essa é uma qualidade do sistema brasileiro, não um defeito. As regiões onde o voto é concentrado, se o voto distrital for aprovado, privilegiará partidos pouco ideológicos e a extinguirá legendas mais orgânicas, que tendem a ter um voto mais disperso.
No debate sobre a reforma política é, de fato, necessário incluir as fontes de financiamento eleitoral e partidário, para que se elimine essa grave deficiência na representação política brasileira. Outras coisas mais devem ser discutidas. O que não se pode fazer é estreitar o debate para questões meramente eleitorais. As eleições são apenas um capítulo na vida de uma nação. A política é feita todo dia. Por exemplo, nesse debate todo não se pode esquecer que o programa Bolsa Família foi muito mais eficiente, em termos de modernização política dos bolsões de pobreza, do que propriamente uma mudança na lei. O voto eletrônico cumpriu um papel importantíssimo de reduzir a fraude em grotões eleitorais. O voto do analfabeto incluiu um elemento vital na representação eleitoral brasileira.
A expansão de direitos de cidadania – educação, saúde, previdência, renda mínima e o direito sem restrições ao voto – são muito mais eficientes na mudança de qualidade de nossa democracia do que reforçar oligarquias regionais com o voto distrital. O abuso econômico nas eleições não se resolve barateando artificalmente o pleito, como foi feito há quatro anos, ao impedir o uso de propaganda mais variada e formatá-la de forma espartana. Isso apenas torna a política mais chata aos olhos de um eleitor já pouco motivado.
O mesmo ocorre com a Justiça Eleitoral: aparência de rigor não é necessariamente sinal de que a justiça está sendo feita. Mas isso é assunto para outra coluna.