O Conversa Afiada reproduz texto de Mauro Santayana, extraído do JB online:
A rejeição do Senado e o diálogo político
por Mauro Santayana
É raro que o poder executivo seja vencido em uma indicação para alto cargo público no Senado Federal. É raro, mas está dentro da realidade da política e do jogo democrático. Talvez tenha faltado à Presidente da República, assoberbada pelos problemas maiores - como os da situação econômica internacional e da rebeldia de alguns militares da reserva - tranqüila conversa com alguns senadores do PMDB necessária à avaliação da possibilidade de que o Sr. Bernardo Figueiredo viesse a ser rejeitado pelo plenário da Câmara Alta. Milita, em seu favor, o fato de que o nome já fora aprovado pela Comissão de Infraestrutura, o que significava, dentro da tradição parlamentar, que o plenário confirmaria a comissão específica.
Ocorreu, então, a inesperada convergência entre as duas alas do PMDB – a liderada pelo Vice-Presidente, Michel Temer, e a dos minoritários no partido, de conduta independente, como Pedro Simon e Roberto Requião. Além de sua biografia conhecida, os dois contavam com outra arma forte: os relatórios do Tribunal de Contas da União, pejados de restrições ao diretor da Agência Nacional de Transportes Terrestres, que não o recomendavam à recondução.
Temos que analisar essa decisão do plenário - que não é tão grave assim - em duas dimensões. A primeira é a das relações entre o governo e suas bases parlamentares, e a outra, mais de fundo, é a da teratologia constitucional de nossa República, mutilada pelos estupros costumeiros, conforme as circunstâncias: os chamados expedientes casuísticos. Ao que parece, temos impaciência diante dos desafios maiores, e quem sofre é a Carta Política. Temos que conversar mais, discutir mais, procurar o entendimento em nome das razões maiores do país. Essa paciência tem faltado, aos dois lados. E, a cada dia, mais.
Contraria a lógica, em sistema presidencialista como o nosso, a escorregadia promiscuidade entre o poder legislativo e o poder executivo. Amarrados à sua história, por sua vez atada ao sistema ibérico de poder, fundado na autoridade dos reis e da Igreja, os brasileiros, de modo geral, não entendem a verdadeira natureza dos parlamentos. O poder legislativo, com as suas distorções, suscita, em parcelas da cidadania, a idéia de que os deputados e senadores são inúteis e prejudiciais. Apesar desse julgamento impensado, o poder legislativo é o mais elevado em qualquer Estado, porque representa, em sua natureza, a soberania direta do povo.
O poder legislativo é o mais alto de um sistema republicano, porque é o povo reunido para o exercício de sua soberania. Por isso os redatores da Constituição dos Estados Unidos, ao colocar em prática a teoria da independência dos poderes, cuidaram de proibir que parlamentares exerçam quaisquer cargos no poder executivo. Para isso, devem renunciar antes a seus mandatos. A Constituição Brasileira de 1891, em seus artigos 23 e 24, acolheu esse princípio, e de forma bem clara, estabelecendo que os parlamentares, além de impedidos de exercer o poder executivo – sem a renúncia prévia ao mandato – tampouco podiam realizar contratos com o Estado, e ocupar cargos em empresas estatais e nos bancos.
Ao contrário do que supõe a imaginação popular, no sistema promíscuo que corrói o estado republicano, os Chefes de Estado e de Governo não têm tanto poder assim. Eles são obrigados a ceder parcelas ponderáveis do exercício do poder executivo a deputados e senadores. Trata-se de um sistema mau para os dois lados, porque, da mesma forma que o poder legislativo invade a competência do executivo, o poder legislativo é violentado pelo poder executivo. Nenhum dos dois exerce plenamente as suas prerrogativas, o que impede a realização republicana do Estado.
A presidente da República se reuniu ontem com o vice-presidente Michel Temer. É bom que se reúnam cada vez mais e imponham bom senso a seus liderados. Há ministros falando demais, e há membros do PMDB de língua solta, da mesma forma que os há no PT e em outros partidos. A presidente entende que a rejeição do nome que indicou para a ANTT não é ofensa à sua autoridade, mas, sim, o exercício legítimo de uma prerrogativa do Senado. Se assim não fosse, não haveria a necessidade dos ritos constitucionais de aprovação.
O momento histórico, sendo de grave desafio ao Brasil, não pode admitir a ligeireza na administração dos desencontros políticos. Mas, nem por isso, podemos fazer do episódio um bicho de sete cabeças. A política existe para administrar os conflitos – e os conflitos se repetirão, e terão que ser resolvidos, enquanto os homens viverem em comunidades. Ontem mesmo, o poder executivo viu-se contestado pelo STF, ao julgar invasão anterior aos direitos legislativos, no caso da criação do Instituto Chico Mendes por medida provisória. Nesses choques, que pedem a prudência das negociações políticas permanentes entre os poderes, o sistema republicano amadurece e se consolida.