Dilma quer a neutralidade da rede na internet
A Presidenta Dilma Rousseff recebeu ontem (16), em reunião no Palácio do Planalto, os representantes do Comitê Gestor da Internet (CGI).
Na pauta, a presidente tratou de dois assuntos que ocupam a ordem do dia no Planalto: a aprovação no Congresso do Marco Civil da Internet; e a segurança institucional envolvendo informações do governo - setor exposto pelas denúncias do ex-analista da NSA, Edward Snowde.
(Clique aqui para ler “Dilma não vai a Obama. E resposta virá na ONU”; e aqui para ler “Ataulfo não engole o Chico Buarque até hoje”.)
Sobre isso, a presidente pediu a ajuda do Comitê para elaborar o discurso que fará, semana que vem, na abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York.
A Presidenta deverá propor na ONU uma nova governança global com relação à segurança na rede.
A reunião mobilizou a cúpula do governo: os ministros de Ciência, Tecnologia e Inovação; Casa Civil; Comunicações; Defesa; Indústria e Desenvolvimento; Planejamento; Justiça; Relações Exteriores, além do Advogado-Geral da União, Luis Inácio Adams.
Na reunião, a Presidenta defendeu o princípio de neutralidade da rede, um dos pontos mais discutidos no novo Marco.
A ideia de neutralidade da rede consiste em impedir que empresas que explorem a infraestrutura de transmissão e difusão da internet possam privilegiar cliente e controlar conteúdos. Ou seja, a neutralidade veda qualquer tipo de controle do dono do cabo sobre aquilo que transita pelo cabo.
Em entrevista a Paulo Henrique Amorim, por telefone, o professor Sérgio Amadeu, representante do Terceiro Setor do Comitê Gestor da Internet, comentou os principais pontos da reunião, que antecede uma dura batalha no Congresso Nacional pela aprovação da proposta.
Segue a íntegra da conversa em áudio e texto:
PHA – Sérgio, como foi esse encontro e por que ele se realizou?
Sérgio Amadeu: Esse encontro foi ontem (dia 16) à tarde, começou às 17 horas em ponto, no Palácio.
A presidente Dilma trouxe com ela o ministro da Justiça; das Comunicações; do Desenvolvimento; do Planejamento; da Casa Civil; da Ciência e Tecnologia e da Defesa.
Então, ela deu muita importância à reunião com o Comitê Gestor da Internet.
Talvez para mostrar que ela não concorda com os boatos de que é a ANATEL que deveria cuidar das políticas de internet no Brasil.
Foi um reconhecimento da presidenta e do seu governo a uma instância multissetorial, que é o Comitê Gestor.
Ela queria discutir com o Comitê Gestor o Marco Civil da Internet e como garantir a privacidade dos cidadãos e a segurança dos Governos - do Estado - diante dos perigos que existem na rede.
A reunião foi muito boa. Ela deixou claro que defende a neutralidade da rede, ou seja: quem controla a infraestrutura de comunicações não pode controlar as informações que passam pelos seus cabos.
Tem que ser neutro, não pode filtrar as informações por qualquer motivo que seja.
PHA- Quando ela defende a neutralidade da rede, isso se refere também ao fato de que, aquele que tem o cabo - que tem o mecanismo físico da transmissão da informação - não pode cobrar de duas maneiras diferentes por duas mensagens que por essa rede passam? Ou seja, ela não pode cobrar de um cliente grande menos do que cobra de um cliente pequeno ? É esse o sentido da neutralidade, também?
Sérgio Amadeu: É também, não pode fazer a discriminação do pacote.
Porque, na verdade, o cliente grande já paga, para oferecer conteúdo, uma banda muito alta.
Já o usuário em casa paga para ter mais banda. Por exemplo, o cara que tem 10 mega na sua conexão em casa já paga mais do que quem tem um mega.
Esse o problema. O problema é que as operadoras querem fazer acordos para dar privilégios de tráfego para alguns grupos econômicos.
Ele vai dar privilégio de tráfego para o site da Microsoft, enquanto que o blog do Sérgio Amadeu, que não tem recursos, vai andar lentamente pelos seus cabos.
É como um pedagiamento, um pedágio no ciberespaço.
Para entender isso, seria como funciona a TV a Cabo. Para você ter acesso a determinadas aplicações você tem que pagar mais caro. Para você oferecer conteúdo, você tem que pagar mais caro.
A verdade é que, se você permitir a quebrar da neutralidade da rede, além de você mudar completamente a face da internet, o jeito que a internet funciona hoje, você vai colocar em risco a criatividade da internet.
A internet não pára de criar aplicações. Na internet, você, eu, ninguém precisa pedir autorização, seja a governos ou corporações para criar uma nova aplicação, um novo conteúdo.
Se for boa a nova aplicação, se o protocolo criado for útil, as pessoas vão usar.
Agora, se as operadoras puderem filtrar o tráfego; bloquear o tráfego; fazer pacotes discriminando quem paga menos e quem paga mais dentro de seus cabos o que vai acontecer é que, na hora em que a minha universidade criar o protocolo da internet 3D – que ainda não existe – eu vou ter que negociar com muitas teles para que esse protocolo possa andar na rede.
Então, a criatividade ficará em risco, se a gente quebrar a neutralidade.
PHA: Ela, formalmente, disse: “eu sou a favor da neutralidade da rede”?
Sérgio Amadeu: Ela formalmente disse que é a favor da neutralidade da rede e pediu a ajuda do Comitê Gestor para vencer essa batalha no Congresso Nacional.
Porque é uma batalha. O lobby das operadoras no Congresso é muito forte. Hoje elas tem 8% do Produto Interno Bruto.
E eles tem deputados, que já estão fazendo campanha contra a aprovação do Marco Civil. Principalmente contra a neutralidade e contra um outro artigo que diz que eles não podem copiar nossa navegação para tentar vender publicidade.
Eles dizem: “o Google tem o banco de dados das pessoas e nós também queremos”. Mas é completamente diferente. Eu ou qualquer um outro que seja acessa o Google porque quer, eu não sou obrigado a acessar o Google.
Agora, imagine se para acessar a internet eu seja obrigado a fazer uma partilha [de dados] com uma operadora de telecomunicação ou para um provedor de telecom.
E se esse provedor puder copiar toda a nossa navegação? Para poder me analisar, fazer mineração de dados e me vender publicidade? Nossa intimidade e privacidade acabaram.
Outra coisa - que algumas pessoas até tentaram colocar na última versão do relatório do Marco Civil - é a retirada de conteúdo sem ordem judicial, quando esse conteúdo violar questões relacionadas a direitos autorais.
A sociedade civil acha isso muito perigoso, vai criar uma onda de denúncias vazias.
Isso tem que ser discutido na lei de direito autoral, na reforma do direito autoral. Isso não tinha entrado no debate do Marco Civil até agora, foi entrando no final, agora, aos 45 minutos do segundo tempo, e isso atrapalha.
Nós alertamos à Presidenta também que a retirada de conteúdo sem ordem judicial é um perigo.
Você deve ter visto no Rio, o governador do Rio, pede dados, sem ordem judicial, as empresas e os provedores fazerem qualquer coisa. Imagina se você cria uma onda de denuncismo na internet? Nossa política vai passar a ser feitas de uma forma muito perversa.
PHA: Sérgio, a Presidenta estava sobretudo preocupada com a questão da segurança das informações trafegadas na internet, sobre a possibilidade de instituições como a National Security Agency grampear os brasileiros, ou isso é um dos problemas que preocupam ela?
Sérgio Amadeu: Não, são dois problemas que ela colocou. Uma coisa é o Marco Civil, uma lei de direitos e deveres, que nós queremos aprovar para que a internet continue funcionando como ela funciona hoje, porque ela está sob ataque em muitos lugares.
Agora, a questão da segurança da informação, motivada pelas recentes denúncias do Snowden, que de fato a incomoda.
Ela vai fazer um discurso na ONU na quarta-feira que vem.
Ela pediu ajuda ao Comitê para que dê subsídios ao discurso dela que, sem dúvida, vai tratar da importância da internet para a opinião pública mundial.
A importância para o cotidiano das pessoas, empresas e governos.
Ela certamente vai falar do problema da espionagem – que lei nenhuma vai conseguir evitar, certo?
Então, ela não mistura o Marco Civil com espionagem.
Ela pediu ajuda também para ver como se pode ter um modelo de governança da internet, que reduza interferências não democráticas na sua condução.
Nós mostramos como funciona o Comitê Gestor no Brasil, que é multissetorial, em que o Governo é minoria, e nós mostramos o por quê.
PHA: Quem compõe o Comitê Gestor?
Sérgio Amadeu: Comitê Gestor é composto por quatro setores: o Governo; os representantes da sociedade civil; os representantes do setor empresarial; e os representantes do setor técnico-científico, a academia.
Então ele é quadripartite, e a soma dos setores não-Governo é maior que o Governo.
Por que isso? Porque já está no espírito da Constituição de 88.
Você eleger um Governo não é dar carta branca para ele. Ele tem que negociar coisas o tempo todo com a população, ainda mais na internet, que não pode ficar aprisionada em uma lógica partidária.
PHA: Quantos membros têm?
Sérgio Amadeu: São 19 membros.
PHA: Vocês chegaram a oferecer para ela alguma alternativa técnica que possa impedir o grampeamento de mensagens, seja de cidadão, seja de governantes?
Sérgio Amadeu: Nós temos condições de oferecer alternativas que reduzam esse escaneamento, mas nós não conseguimos entrar em detalhes.
Ela disse que certamente haveria outras reuniões e ela pediu ajuda do Comitê nisso.
PHA: Tinha alguém da ABIN lá?
Sérgio Amadeu: Olha, Paulo, eu ia fazer uma piada, eu ia falar: ''provavelmente tinha, mas oficialmente, não''. (risos)
Mas tinha o ministro da Defesa, o Celso Amorim.
PHA: Outra coisa, Sérgio, qual é a sua avaliação sobre a votação desse Marco Civil no Congresso?
Sérgio Amadeu: A Presidenta pediu urgência constitucional, ou seja, o projeto tranca a pauta, e ai vai ter que ter uma votação, qualquer que seja.
Eu acho que a sociedade civil tem condições de esclarecer o que está em jogo, de defender um Marco Civil que surgiu dentro da própria sociedade civil, com mais de duas mil contribuições, o Comitê pegou e enviou ao Congresso.
O Comitê Gestor vai ter que fazer uma campanha de esclarecimento. A internet funcionar do jeito que funciona hoje é fundamental para a liberdade e diversidade cultural.
PHA: Mas passa no Congresso?
Sérgio Amadeu: Eu acho que ele passa, sim.
Mas passa com um debate acirrado, porque apesar de ter um único setor diretamente interessado na quebra da neutralidade – que é um dos pontos mais polêmico – é um setor que tem muito poder de financiamento de campanha.
PHA: Quem é o campeão na oposição ao projeto?
Sérgio Amadeu: É o deputado do PMDB do Rio de Janeiro, Eduardo Cunha, ele é o principal porta-voz das operadoras.
PHA: Ele é nosso velho conhecido da MP dos Portos.
Sérgio Amadeu: Provavelmente, provavelmente. Ele é muito ligado às operadoras. Ele tem sido o principal articulador na campanha contra o Marco Civil.
Aliás, Paulo, um dos coletivos Anonymus, muito ligados aos interesses da extrema direita brasileira, desde ontem, depois da reunião com a Presidenta, começou a intensificar os ataques ao Marco Civil.
Tudo isso, com a mão por trás, de quem quer violar direitos constitucionais. Nós estamos chamando todos os demais coletivos da sociedade civil, inclusive dos Anonymus, para denunciar essa farsa. Porque na verdade, quem é contra o Marco Civil é quem quer bloquear a internet.
PHA: Uma questão: o Google já é hoje o segundo maior recebedor de publicidade no Brasil, só perde para a Globo, e o Google não paga imposto no Brasil. O Marco Civil poderia cuidar dessa anomalia? (Clique aqui para ler “Telejornais (?) da Globo despencam no Globope”.)
Sérgio Amadeu: Eu acredito que essa anomalia tem que ser coibida na legislação tributária de comércio eletrônico e, não, no Marco Civil.
Nós vamos deformar demais o Marco Civil se incluirmos essa que é uma questão tributária.
Nós precisamos de uma lei de comércio eletrônico que envolve outras empresas também, não só o Google. Agora, isso está sendo debatido no mundo inteiro, não é fácil de fazer. Mas nós precisamos.
PHA: Mas isso não interessa à Globo, Sérgio?
Sérgio Amadeu: O quê? A cobrança?
PHA: É. O Google concorrer com ela aqui e não pagar imposto de renda – embora, ela também não pague, ela também dá o beiço na Receita.
Sérgio Amadeu: É, ela também não paga...
O que está acontecendo no mundo inteiro é o que chamamos de convergência. Toda a comunicação está se digitalizando.
O Google vai lançar uma Web TV, vai produzir conteúdo também; vai atuar como uma telecom – já atua como uma telecom, como empresa de telecomunicação em plano para celular – e vai avançar, porque ele quer ter o maior conjunto de redes para oferecer comodidade aos seus clientes.
As telecoms tem sites; tem empresas de radiodifusão; tem empresas de conteúdo. E no meio disso tudo, desse jogo de gigantes, você tem empresas de radiodifusão (TV e Rádio) que tem menos capital.
A minha impressão é que os grandes grupos, que tem muito capital, vão avançar sobre esses grupos (de radio difusão) que tem menos capital.
A questão é: como é que nós vamos proteger esses grupos - se é que a sociedade deve protegê-los - da concentração de capital. Essa é a questão que está colocada.
PHA: Existe a possibilidade de o Google comer a Globo?
Sérgio Amadeu: Existe mais a possibilidade de uma operadora de telecom comprar parte da Globo e de outras radiodifusoras também.
Porque nós estamos falando de capital. Quanto será que as radiodifusoras faturaram ano passado? Uns 25 bilhões. O setor de telecomunicações deve ter faturado uns 250, 260 bilhões, veja que situação.
PHA: É isso, dez vezes mais. Vocês chegaram a discutir nessa reunião a Ley de Medios? Um marco regulatório das comunicações?
Sérgio Amadeu: Não, não tratamos porque nós tínhamos dois pontos na pauta: o Marco Civil e a segurança da informação.
Então, o Comitê não estava pautado para isso. Mas é muito importante que isso entre na pauta do Governo.
PHA: O ministro Paulo Bernardo falou alguma coisa durante a reunião?
Sérgio Amadeu: Não, não, o ministro Paulo Bernardo não se pronunciou durante toda a reunião.
PHA: Ah, que ótimo ! Uma última pergunta, Sérgio: eu posso dizer então, que no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, a Presidenta Dilma vai defender a neutralidade da rede?
Sérgio Amadeu: Olha, eu não sei se ela vai entrar nesse detalhe, mas ela vai defender a liberdade na internet, vai defender um modelo de governança em uma internet democrática. Eu acho que, provavelmente, vai defender a neutralidade como um princípio, numa rede que é transnacional.
Murilo Silva, editor do Conversa Afiada