Leblon: hora e vez dos corações valentes
O Conversa Afiada reproduz editorial de Saul Leblon, extraído da Carta Maior:
A hora e a vez dos corações valentes
Sem politizar a discussão dos modelos em disputa no país, a dinâmica do ajuste deslizará inevitavelmente para a chave do arrocho, ganhe quem ganhar em outubro.
por: Saul Leblon
O discurso da Presidenta Dilma na convenção do PT, que ratificou sua candidatura à reeleição, neste sábado, merece mais do que a atenção dispensada normalmente à retórica eleitoral.
Há ali, talvez, o sinal de uma importante transformação.
O economicismo perde espaço como ferramenta central da luta pelo desenvolvimento na concepção petista e no projeto de reeleição.
Essa primazia passa a ser agora da questão política.
A pavimentação do ‘novo ciclo histórico’ que se almeja construir, conforme as palavras da candidata, recai sobre uma democracia tonificada por reformas e pela ampliação de canais com a sociedade.
“A transformação social produzida por nossos governos criou as bases para a promoção de uma grande transformação democrática e política no Brasil. Nossa missão, agora, é dar vida a esta transformação democrática e política, sem interromper, jamais, a marcha da grande transformação social em curso. Não vejo outro caminho para concretizar a reforma política do que a participação popular, mobilizando todos os setores da sociedade por meio de um Plebiscito (...) São tão amplos os desafios, as propostas e as tarefas que temos, que é mais apropriado chamar o que nos propomos construir de "novo ciclo histórico" - e não apenas de "novo ciclo de desenvolvimento", disse a Presidenta.
No centro das propostas para um quarto mandato do PT no país, portanto, está a reforma política, mas também a ampliação da democracia participativa, através dos conselhos populares, e a democratização da comunicação, como lembrou outro orador do encontro, o presidente do PT, Rui Falcão.
A nova ênfase não ofusca a atenção aos desafios e metas para expandir os avanços econômicos e sociais acumulados nos últimos 12 anos.
‘Nosso Plano de Transformação Nacional será a ampliação do grande conjunto de mudanças que estamos realizando junto com o povo brasileiro’, disse Dilma.
E o ex-presidente Lula lembrou que a vitória em outubro passa por uma ampla mobilização para comparar resultados, ‘entre o que eles fizeram e o que nós realizamos’.
O que emerge agora, porém, é a aparente certeza de que nenhum outro compromisso relevante com a população será viável sem dispor do lastro institucional que assegure a celeridade e a sustentação do processo.
A babel partidária no Congresso, a supremacia do dinheiro privado nas campanhas , a desgastante formação das maiorias tornam impossível erguer as linhas de passagem para um novo ciclo de crescimento com a coerência e a rapidez requeridas pelos gargalos da economia e as urgências da sociedade.
Essa é a hora de um coração valente –como lembra o jingle da campanha pela reeleição.
Trata-se de um salto lentamente amadurecido no círculo dirigente do partido. Mas que ganhou impulso e a urgência de uma ruptura, a partir de dois acontecimentos: o processo da AP 470 e os protestos de rua por melhor qualidade de vida, iniciados em junho de 2013.
A narrativa martelada pelo dispositivo midiático conservador sobre esses episódios cuidou de selar o divisor de águas.
Não por acaso, na abertura do 14º Encontro dos Blogueiros e Ativistas Digitais, em 16 de maio, o ex-presidente Lula resumiria essa mudança em uma declaração peremptória: ‘ Sem reforma política não faremos nada neste país. E ela terá que ser construída pela rua, por uma Constituinte exclusiva. O Congresso que está aí pode mudar uma vírgula aqui, outra ali. Mas não a fará’, disse ele.
Não era força de expressão.
Trata-se de dar consequência institucional ao vapor acumulado na caldeira das realizações e das conquistas, mas também das demandas, gargalos e impasses da última década.
Reconhecido pelo FMI como a nação que mais reduziu o desemprego em pleno colapso mundial –11 milhões desde 2008, enquanto o mundo fechava mais de 60 milhões de vagas-- o Brasil avulta agora como a ovelha negra aos olhos do padrão ortodoxo.
O pleno emprego verificado em sua economia impede que os ganhos de produtividade se façam pelo método tradicional de compressão dos holerites.
A ‘purga’ de desemprego e arrocho é a alternativa da ‘ciência’ conservadora para devolver ‘eficiência’ à indústria e moderação aos preços.
A receita é vendida diuturnamente como parte de um calendário inevitável após as eleições, ganhe quem ganhar, embora o ‘consenso’ não conte com a anuência da candidata que lidera a disputa:
‘Eu não fui eleita para trair a confiança do meu povo, nem para arrochar salário de trabalhador! Eu não fui eleita para vender patrimônio público, mendigar dinheiro ao FMI, e colocar, de novo, o país de joelhos, como fizeram! Eu fui eleita, sim, para governar de pé e com a cabeça erguida!’, disse a Presidenta Dilma na convenção de sábado.
Excluir o arrocho das prioridades de governo para relançar o crescimento encerra desafios respeitáveis.
Há problemas reais a enfrentar.
Ao resistir à ‘destruição criativa’ promovida urbi et orbi pela maior crise do capitalismo desde 1929, o Brasil tornou-se de fato um paradoxo.
De um lado, carrega um trunfo social vibrante.
Enquanto a renda do trabalho e a dos mais pobres esfarela em boa parte do mundo, vive-se o inverso aqui.
Entre 1960 e 2000, a fatia do trabalho na renda nacional havia recuado de 56,6% para algo abaixo de 50%.
Entre 2004 e 2010 essa participação cresceu 14,4%.
Em grande parte, segundo o Ipea, por conta do ganho real de poder de compra do salário mínimo, que cresceu 70% de 2003, como lembrou Dilma na convenção.
Sob governos do PT , os 10% mais pobres da população tiveram um crescimento de renda acumulado de 91,2%.
A parcela endinheirada ficou com um ganho da ordem de 17%.
Nas economias ricas, como demonstrou Thomas Piketty, o ciclo recente agravou um padrão feito de desigualdade ascendente.
Em alguns casos, a mais-valia absoluta está de volta, através de políticas de corte salarial puro e simples, ou do seu congelamento, associado à ampliação da jornada de trabalho.
Grécia, Portugal e Espanha são os laboratórios desse revival da aurora capitalista.
No total, 24% dos europeus não tem renda para sustentar suas necessidades básicas, entre as quais, alimentar-se.
Nos EUA, 47,5 milhões vivem com menos de 2 dólares por dia. O salário mínimo é inferior ao vigente na era Reagan.
Não é difícil imaginar o impacto dessa espiral regressiva na fragilização dos sindicatos e na predação de direitos.
Os custos salariais recuam celeremente em boa parte do mundo. O conjunto reposiciona os fluxos de comércio, as cadeias de produção e a renda no planeta.
A deterioração das relações de trabalho no ambiente global fura o bloqueio das políticas progressistas brasileiras através do canal do comércio exterior.
Uma parte da distribuição de renda promovida desde 2003 vaza para os mercados ricos, gerando encomendas e lucros por lá, através das importações baratas que sufocam a manufatura brasileira.
25% do consumo atual de manufaturados no Brasil tem origem em mercadorias importadas.
O déficit comercial específico nessa área em 2013 foi de US$ 105 bi.
A solução conservadora para esses desequilíbrios é martelada sem trégua pelo seu aparato emissor.
O Brasil precisaria, segundo essa visão das coisas, de um choque de juros e de um aumento do desemprego; um tarifaço para ajustar os ‘preços represados’ --sem correção dos salários, naturalmente ; bem como uma abertura comercial ampla, com cortes de tarifas, câmbio livre e mobilidade irrestrita para os fluxos de capitais.
O conjunto, assegura-se, permitiria desmantelar a couraça de ‘atraso e populismo’ que impede o país de voltar a crescer com eficiência e competitividade.
Trata-se, em síntese, de trazer para o país a crise e os desdobramentos que o PT evita desde 2008. De forma algo tardia e em dose única.
Esse é o programa de Aécio e assemelhados para colocar o Brasil em linha com o cânone global.
As intervenções da Presidenta Dilma –reforçadas na convenção do PT-- rechaçam a panaceia conservadora.
Seu entendimento é o de que é possível interromper a sangria com medidas destinadas a elevar a produtividade, em duas frentes: a média prazo, com educação, reforma tributária e incentivos ao investimento; a curto prazo, retomando a redução dos juros e a desvalorização do câmbio, tão logo se consolide o recuo da inflação.
A aposta exige forte coordenação do Estado sobre os mercados para funcionar.
E só funcionará associada a uma ampla pactuação de metas para o ‘novo ciclo histórico’ preconizado pela Presidenta Dilma, com o engajamento de partidos, sindicatos e movimentos sociais nesse mutirão democrático.
Exatamente porque é –e será, cada vez mais necessário politizar a discussão dos dois modelos em disputa no país, a reforma política e a regulação da mídia assumiram a centralidade das preocupações de Dilma, Lula e do PT.
Ampliar essa conscientização é o desafio da campanha progressista até as urnas de outubro.
Sem o engajamento de milhões de corações valentes, a dinâmica do ajuste brasileiro deslizará inevitavelmente para a chave do arrocho.
Ganhe quem ganhar no voto.
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