Aula Magna: Comparato sobre Evandro
Recall no lugar de impeachment (que é Golpe)
publicado
24/09/2016
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Evandro: no júri, o povo aprende a julgar e a se governar
Nessa treva do Golpe, o Conversa Afiada deixa o sol entrar: mestre Comparato fala do mestre Evandro.
Ah, o Supremo de Evandro, Hermes Lima e Victor Nunes Leal…
(O jovem Fábio Konder Comparato trabalhou com Evandro no Supremo.)
EVANDRO LINS E SILVA
Evandro Lins e Silva foi um dos mais notáveis representantes da longa linhagem de grandes causídicos, cujo impulso ético na defesa das liberdades conduziu não somente ao foro, mas também à vida pública.
Já tive ocasião de enfatizar que a técnica advocatícia de Evandro Lins e Silva reproduziu as três grandes qualidades que Cícero considerava essenciais na arte oratória: probare, conciliare e movere – vale dizer, provar, convencer e comover.
Para realizar a demonstração probatória, lembrou Cícero, o advogado deve saber explicar, em linguagem acessível ao entendimento dos julgadores, as questões controvertidas na causa, ainda que revestidas de grande complexidade.
Em sua estréia no júri, ao fazer a defesa de um réu, predestinado pelo prenome Otelo a matar a amante num surto patológico de ciúme, Evandro Lins e Silva, na audácia de seus 19 anos, não hesitou em explicar aos jurados a teoria psicológica, recém-divulgada à época em nosso país, sobre a diferença temperamental entre os ciclotímicos e os esquizotímicos.
Já na tarefa de convencer o julgador (o conciliare de Cícero), importa lembrar, como salientou Aristóteles em seu tratado de retórica, que a autoridade moral do orador ou advogado é o principal argumento em favor da justiça da causa por ele defendida. Ora, desde os primeiros anos de exercício da advocacia, Evandro Lins e Silva granjeou uma sólida reputação de integridade profissional, que lhe valeu, em todas as ocasiões, o respeito e a confiança dos juízes, togados ou leigos. Essa auctoritas, no original sentido romano do vocábulo, só aumentou no decorrer de sua atividade profissional.
Por fim, completando a tríade funcional da arte oratória, sustentou Cícero que o advogado – máxime em se tratando de causas penais, acrescento eu – deve apelar, não somente para a razão, mas também para os sentimentos, pois o direito é inseparável da moral, e o juízo moral implica, necessariamente, uma apreciação de valores. O Código Penal, como sabido, para ficarmos com um só exemplo, qualifica como circunstância atenuante “ter o agente cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral” (art. 65, I, a). Ora, como bem salientou a moderna teoria axiológica, os valores não se apreendem pelo raciocínio, mas pela intuição sentimental. Ou, como disse excelentemente Pascal, em tais assuntos é mister saber contar, não com o esprit de géométrie, mas com o esprit de finesse; pois “o coração tem suas razões que a razão desconhece”.
Pois bem, todas essas qualidades, essenciais ao exercício da advocatícia criminal, fundam-se em uma suposição básica: a capacidade do advogado em desvendar a personalidade única, insubstituível e irreprodutível daquele que lhe confiou a defesa de seus direitos e interesses. Muitos séculos antes do aparecimento da ciência genética e da descoberta do DNA, os grandes criminalistas sempre souberam, intuitivamente, que não há nem pode haver delitos iguais, pois cada ação criminosa reflete o caráter inconfundível do seu agente.
Eis por que Evandro sempre foi um defensor constante do tribunal do júri, cuja função maior, como ele não cansou de sustentar, consiste em individualizar o fato criminoso, longe de qualquer abstracionismo técnico ou dogmático.
Aliás, o processo perante o tribunal popular nunca é uma fria e descomprometida análise de fatos passados, mas uma autêntica reencenação de tragédias humanas. O crime imputado ao réu é, de certa forma, reencenado conjuntamente pelos jurados, pelos acusadores, pelos advogados e as testemunhas. Todos ocupam a cena para desempenhar sua parte no enredo. O juiz togado é mero contra-regra, pois sua função consiste em indicar as entradas e saídas dos atores e proclamar a conclusão da peça. Em qualquer hipótese, o papel atribuído ao defensor é de encarnar vividamente o personagem do réu, pois durante a sessão de julgamento este só se manifesta ao ser interrogado pelo juiz presidente.
Nesse sentido, a função do tribunal do júri, na sociedade política, é muito mais rica e importante que aquela desempenhada pelos demais órgãos do Poder Judiciário. É que ao júri não compete apenas a função judicante, mas também a de formar a consciência ética do povo. Ele é, ao mesmo tempo, um tribunal e uma escola.
Ressalte-se, porém, que essa dupla função, o júri só pode desenvolvê-la num ambiente democrático. Atribuir ao cidadão comum o poder de julgar o seu semelhante, e retirar-lhe concomitantemente o poder de governar a sociedade, ou de eleger quem por ele o faça, é provocar uma insuperável contradição no Estado.
Não foi, assim, por simples coincidência que, no mesmo século V a.C., a democracia ateniense deu ao povo a função de julgar as causas mais importantes para a sobrevivência da polis, e fez do teatro trágico uma grande escola de cidadania. A tragédia foi o método artístico por excelência, pelo qual se inculcaram nos cidadãos – até mesmo nas mulheres, o que representava à época uma extraordinária ousadia – as virtudes cívicas indispensáveis ao funcionamento regular do governo democrático.
Papel análogo é exercido pelo tribunal do júri, nas democracias modernas: o povo aprende a julgar e, com isto, aprende também a se governar.
Daí porque uma das instituições mais importantes, na atualidade, para incutir no povo o sentido pleno da democracia consistiria em criar tribunais populares para o julgamento de quaisquer delitos – e não apenas dos crimes dolosos contra a vida – cometidos por agentes políticos, sejam eles chefes do Executivo, parlamentares, ou até mesmo juízes e membros do Ministério Público.
Mas, perguntar-se-á, quando se deu a referida ligação entre a advocacia e a atuação política, na vida de Evandro Lins e Silva?
Ela foi, por assim dizer, natural e imediata.
Todo o período inicial de atuação forense de Evandro ocorreu nos tempos agitados da passagem da República Velha para o governo getulista. Já nessa época, multiplicavam-se os casos de crimes de sangue por motivação política, e o jovem acadêmico cobria, como jornalista, as sessões do tribunal do júri do Rio de Janeiro, onde pontificava a figura ímpar de Evaristo de Moraes, rábula criminalista de gênio.
Em 1935 é deflagrada a insurreição comunista que, desde logo dominada, acarretou considerável número de prisões e processos criminais. Logo no ano seguinte, é criado o infame Tribunal de Segurança Nacional, determinando a lei que a Ordem dos Advogados do Brasil designasse advogados dativos para os réus que não tivessem constituído defensor, disposição que permaneceu em vigor, no entanto, durante pouco tempo. Pois bem, até a extinção do Tribunal de Segurança em 1945, Evandro Lins e Silva defendeu, por designação da nossa corporação profissional ou mandato dos interessados, mais de mil presos políticos; e fez questão de não cobrar nem receber honorários, o que foi, para ele, razão da mais subida honra, pois nunca é demais relembrar que o étimo de honorários é honor.
Como ele teve ocasião de dizer no longo depoimento sobre sua vida, prestado à Fundação Getúlio Vargas e publicado em livro sob o título O Salão dos Passos Perdidos, “a profissão de advogado não tem apenas a destinação de ganhar dinheiro; tem também uma função mais nobre: a prestação de serviços gratuitos aos necessitados. É um múnus público que o advogado desempenha nessa hora”.
Evandro Lins e Silva poderia ter se limitado a isto, e já teria largamente prestigiado a beca. Mas não. Entregou-se também à defesa, tanto judicial, quanto extrajudicial, dos direitos sociais e da democracia. Em sua Profissão de Fé aos 80 Anos, discurso que pronunciou em sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Rio de Janeiro, fez questão de salientar que “o papel do advogado, na organização da sociedade e em face da própria vida, deve ser representado com a visão ampla e dinâmica de uma pregação permanente do aperfeiçoamento da ordem jurídica, no pretório e fora dele, e esse fim só se tem alcançado, ao longo do tempo, quanto mais se alarga e aprofunda a justiça social”. E concluiu: “O advogado é, antes de tudo, um cidadão. Por isso, tem deveres para com o povo e a Nação”.
Daí encontrar-se Evandro, logo após a deposição de Getúlio Vargas em 1945, entre os fundadores do movimento político denominado Esquerda Democrática, depois transformada no Partido Socialista Brasileiro. Até o fim da vida, aliás, ele se manteve convictamente adepto do socialismo democrático.
Uma década mais tarde, juntamente com Sobral Pinto e Victor Nunes Leal, Evandro criou a Liga de Defesa da Legalidade, para defender a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek, ameaçada pela campanha golpista liderada por Carlos Lacerda. E quis o destino que, empossado Juscelino, ao sobrevir a rebelião de Aragarças, Evandro fosse designado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para fazer a defesa de um dos insurretos, o advogado Luís Mendes de Morais.
Alguns anos após, convocado pelo Presidente João Goulart, Evandro, após madura reflexão, acedeu em assumir a chefia da Procuradoria-Geral da República, onde teve ocasião de atuar como autêntico Servidor do Povo, de acordo com o preciso sentido etimológico dos vocábulos ministério e público. Ocupou, a seguir, a chefia da Casa Civil da presidência da República, a função de Ministro das Relações Exteriores, para, finalmente, ser nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, de onde foi afastado, juntamente com Victor Nunes Leal e Hermes Lima, por um vergonhoso ucasse do governo militar.
O retorno de Evandro Lins e Silva à advocacia, da qual nunca se separou na verdade em espírito, veio a culminar, mais de duas décadas após, quando aceitou representar o presidente do Conselho Federal da OAB e o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, respectivamente, Marcelo Lavenère Machado e Barbosa Lima Sobrinho, no processo de impeachment de Fernando Collor de Mello. Para tanto, Evandro se declarou investido, segundo a fórmula feliz por ele cunhada, em um “mandato popular invisível”.
É importante ressaltar essa declaração agora, quando acabamos de assistir ao deplorável espetáculo da destituição da Presidente Dilma Rousseff, manobrada por uma minoria de falsos representantes do povo brasileiro.
Na verdade, o impeachment revelou-se hoje um instituto francamente ilegítimo, perante o princípio fundamental da democracia ou soberania do povo. Ele foi criado na Inglaterra durante a Idade Média, para reforçar o poder dos estamentos privilegiados da nobreza e do clero contra o absolutismo do monarca. Com a instituição pioneira do regime parlamentar na Inglaterra, porém, o instituto tornou-se naquele país obsoleto.
Os Estados Unidos adotaram o impeachment, tanto no plano federal quanto no estadual. Mas sua utilização sempre foi rara. Até hoje, apenas dois Presidentes, Andrew Johnson e Bill Clinton, foram denunciados pela Câmara dos Representantes, mas ambos deixaram de ser condenados pelo Senado. Richard Nixon renunciou ao cargo, antes de ser denunciado.
Na América Latina, entretanto, a partir de 1985, quando os Estados Unidos decidiram não mais apoiar os golpes militares, o instituto passou a ser usado como instrumento preferencial dos grupos oligárquicos para a destituição de chefes de Estado que contrariavam seus interesses. Entre 1985 e 2005, nada menos que 13 (treze) presidentes da República foram destituídos. Em 2012, o Presidente Fernando Lugo, uma espécie de Lula paraguaio, foi destituído pelos oligarcas em 48 horas.
Em 2005, convencido da ilegitimidade do impeachment perante o princípio democrático, ofereci a dois Senadores uma minuta de Proposta de Emenda Constitucional, criando em nossa ordem constitucional o instituto do recall, ou referendo popular revocatório de mandatos eletivos; tanto dos chefes do Poder Executivo, como dos parlamentares. Foi a PEC nº 73, que tramitou no Senado até 2014, quando foi arquivada. Ou seja, a mesma Casa Legislativa que rejeitou a adoção do instituto de democracia direta, pelo qual o povo soberano destitui agentes políticos por ele eleitos, decidiu por si só, sem consulta ao povo, quebrar o mandato popular da Presidente Dilma Rousseff.
É, portanto, da maior evidência que uma das grandes tarefas atuais dos defensores da Democracia contra a dominação oligárquica, que desde sempre imperou neste país, consiste em abolir o instituto do impeachment, introduzindo em seu lugar o referendo popular revocatório de mandatos eletivos.
Distinto auditório,
Sem sombra de dúvida, o maior elogio que se pode fazer à figura maiúscula de Evandro Lins e Silva é afirmar que ele foi, na advocacia e fora dela, em todas as circunstâncias, um paradigma de servidor público, vale dizer, um defensor modelar da dignidade do povo brasileiro.
Que o seu exemplo de vida possa inspirar as novas gerações!
Arcadas, 26 de setembro de 2016
Evandro Lins e Silva foi um dos mais notáveis representantes da longa linhagem de grandes causídicos, cujo impulso ético na defesa das liberdades conduziu não somente ao foro, mas também à vida pública.
Já tive ocasião de enfatizar que a técnica advocatícia de Evandro Lins e Silva reproduziu as três grandes qualidades que Cícero considerava essenciais na arte oratória: probare, conciliare e movere – vale dizer, provar, convencer e comover.
Para realizar a demonstração probatória, lembrou Cícero, o advogado deve saber explicar, em linguagem acessível ao entendimento dos julgadores, as questões controvertidas na causa, ainda que revestidas de grande complexidade.
Em sua estréia no júri, ao fazer a defesa de um réu, predestinado pelo prenome Otelo a matar a amante num surto patológico de ciúme, Evandro Lins e Silva, na audácia de seus 19 anos, não hesitou em explicar aos jurados a teoria psicológica, recém-divulgada à época em nosso país, sobre a diferença temperamental entre os ciclotímicos e os esquizotímicos.
Já na tarefa de convencer o julgador (o conciliare de Cícero), importa lembrar, como salientou Aristóteles em seu tratado de retórica, que a autoridade moral do orador ou advogado é o principal argumento em favor da justiça da causa por ele defendida. Ora, desde os primeiros anos de exercício da advocacia, Evandro Lins e Silva granjeou uma sólida reputação de integridade profissional, que lhe valeu, em todas as ocasiões, o respeito e a confiança dos juízes, togados ou leigos. Essa auctoritas, no original sentido romano do vocábulo, só aumentou no decorrer de sua atividade profissional.
Por fim, completando a tríade funcional da arte oratória, sustentou Cícero que o advogado – máxime em se tratando de causas penais, acrescento eu – deve apelar, não somente para a razão, mas também para os sentimentos, pois o direito é inseparável da moral, e o juízo moral implica, necessariamente, uma apreciação de valores. O Código Penal, como sabido, para ficarmos com um só exemplo, qualifica como circunstância atenuante “ter o agente cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral” (art. 65, I, a). Ora, como bem salientou a moderna teoria axiológica, os valores não se apreendem pelo raciocínio, mas pela intuição sentimental. Ou, como disse excelentemente Pascal, em tais assuntos é mister saber contar, não com o esprit de géométrie, mas com o esprit de finesse; pois “o coração tem suas razões que a razão desconhece”.
Pois bem, todas essas qualidades, essenciais ao exercício da advocatícia criminal, fundam-se em uma suposição básica: a capacidade do advogado em desvendar a personalidade única, insubstituível e irreprodutível daquele que lhe confiou a defesa de seus direitos e interesses. Muitos séculos antes do aparecimento da ciência genética e da descoberta do DNA, os grandes criminalistas sempre souberam, intuitivamente, que não há nem pode haver delitos iguais, pois cada ação criminosa reflete o caráter inconfundível do seu agente.
Eis por que Evandro sempre foi um defensor constante do tribunal do júri, cuja função maior, como ele não cansou de sustentar, consiste em individualizar o fato criminoso, longe de qualquer abstracionismo técnico ou dogmático.
Aliás, o processo perante o tribunal popular nunca é uma fria e descomprometida análise de fatos passados, mas uma autêntica reencenação de tragédias humanas. O crime imputado ao réu é, de certa forma, reencenado conjuntamente pelos jurados, pelos acusadores, pelos advogados e as testemunhas. Todos ocupam a cena para desempenhar sua parte no enredo. O juiz togado é mero contra-regra, pois sua função consiste em indicar as entradas e saídas dos atores e proclamar a conclusão da peça. Em qualquer hipótese, o papel atribuído ao defensor é de encarnar vividamente o personagem do réu, pois durante a sessão de julgamento este só se manifesta ao ser interrogado pelo juiz presidente.
Nesse sentido, a função do tribunal do júri, na sociedade política, é muito mais rica e importante que aquela desempenhada pelos demais órgãos do Poder Judiciário. É que ao júri não compete apenas a função judicante, mas também a de formar a consciência ética do povo. Ele é, ao mesmo tempo, um tribunal e uma escola.
Ressalte-se, porém, que essa dupla função, o júri só pode desenvolvê-la num ambiente democrático. Atribuir ao cidadão comum o poder de julgar o seu semelhante, e retirar-lhe concomitantemente o poder de governar a sociedade, ou de eleger quem por ele o faça, é provocar uma insuperável contradição no Estado.
Não foi, assim, por simples coincidência que, no mesmo século V a.C., a democracia ateniense deu ao povo a função de julgar as causas mais importantes para a sobrevivência da polis, e fez do teatro trágico uma grande escola de cidadania. A tragédia foi o método artístico por excelência, pelo qual se inculcaram nos cidadãos – até mesmo nas mulheres, o que representava à época uma extraordinária ousadia – as virtudes cívicas indispensáveis ao funcionamento regular do governo democrático.
Papel análogo é exercido pelo tribunal do júri, nas democracias modernas: o povo aprende a julgar e, com isto, aprende também a se governar.
Daí porque uma das instituições mais importantes, na atualidade, para incutir no povo o sentido pleno da democracia consistiria em criar tribunais populares para o julgamento de quaisquer delitos – e não apenas dos crimes dolosos contra a vida – cometidos por agentes políticos, sejam eles chefes do Executivo, parlamentares, ou até mesmo juízes e membros do Ministério Público.
Mas, perguntar-se-á, quando se deu a referida ligação entre a advocacia e a atuação política, na vida de Evandro Lins e Silva?
Ela foi, por assim dizer, natural e imediata.
Todo o período inicial de atuação forense de Evandro ocorreu nos tempos agitados da passagem da República Velha para o governo getulista. Já nessa época, multiplicavam-se os casos de crimes de sangue por motivação política, e o jovem acadêmico cobria, como jornalista, as sessões do tribunal do júri do Rio de Janeiro, onde pontificava a figura ímpar de Evaristo de Moraes, rábula criminalista de gênio.
Em 1935 é deflagrada a insurreição comunista que, desde logo dominada, acarretou considerável número de prisões e processos criminais. Logo no ano seguinte, é criado o infame Tribunal de Segurança Nacional, determinando a lei que a Ordem dos Advogados do Brasil designasse advogados dativos para os réus que não tivessem constituído defensor, disposição que permaneceu em vigor, no entanto, durante pouco tempo. Pois bem, até a extinção do Tribunal de Segurança em 1945, Evandro Lins e Silva defendeu, por designação da nossa corporação profissional ou mandato dos interessados, mais de mil presos políticos; e fez questão de não cobrar nem receber honorários, o que foi, para ele, razão da mais subida honra, pois nunca é demais relembrar que o étimo de honorários é honor.
Como ele teve ocasião de dizer no longo depoimento sobre sua vida, prestado à Fundação Getúlio Vargas e publicado em livro sob o título O Salão dos Passos Perdidos, “a profissão de advogado não tem apenas a destinação de ganhar dinheiro; tem também uma função mais nobre: a prestação de serviços gratuitos aos necessitados. É um múnus público que o advogado desempenha nessa hora”.
Evandro Lins e Silva poderia ter se limitado a isto, e já teria largamente prestigiado a beca. Mas não. Entregou-se também à defesa, tanto judicial, quanto extrajudicial, dos direitos sociais e da democracia. Em sua Profissão de Fé aos 80 Anos, discurso que pronunciou em sessão do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Rio de Janeiro, fez questão de salientar que “o papel do advogado, na organização da sociedade e em face da própria vida, deve ser representado com a visão ampla e dinâmica de uma pregação permanente do aperfeiçoamento da ordem jurídica, no pretório e fora dele, e esse fim só se tem alcançado, ao longo do tempo, quanto mais se alarga e aprofunda a justiça social”. E concluiu: “O advogado é, antes de tudo, um cidadão. Por isso, tem deveres para com o povo e a Nação”.
Daí encontrar-se Evandro, logo após a deposição de Getúlio Vargas em 1945, entre os fundadores do movimento político denominado Esquerda Democrática, depois transformada no Partido Socialista Brasileiro. Até o fim da vida, aliás, ele se manteve convictamente adepto do socialismo democrático.
Uma década mais tarde, juntamente com Sobral Pinto e Victor Nunes Leal, Evandro criou a Liga de Defesa da Legalidade, para defender a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek, ameaçada pela campanha golpista liderada por Carlos Lacerda. E quis o destino que, empossado Juscelino, ao sobrevir a rebelião de Aragarças, Evandro fosse designado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para fazer a defesa de um dos insurretos, o advogado Luís Mendes de Morais.
Alguns anos após, convocado pelo Presidente João Goulart, Evandro, após madura reflexão, acedeu em assumir a chefia da Procuradoria-Geral da República, onde teve ocasião de atuar como autêntico Servidor do Povo, de acordo com o preciso sentido etimológico dos vocábulos ministério e público. Ocupou, a seguir, a chefia da Casa Civil da presidência da República, a função de Ministro das Relações Exteriores, para, finalmente, ser nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, de onde foi afastado, juntamente com Victor Nunes Leal e Hermes Lima, por um vergonhoso ucasse do governo militar.
O retorno de Evandro Lins e Silva à advocacia, da qual nunca se separou na verdade em espírito, veio a culminar, mais de duas décadas após, quando aceitou representar o presidente do Conselho Federal da OAB e o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, respectivamente, Marcelo Lavenère Machado e Barbosa Lima Sobrinho, no processo de impeachment de Fernando Collor de Mello. Para tanto, Evandro se declarou investido, segundo a fórmula feliz por ele cunhada, em um “mandato popular invisível”.
É importante ressaltar essa declaração agora, quando acabamos de assistir ao deplorável espetáculo da destituição da Presidente Dilma Rousseff, manobrada por uma minoria de falsos representantes do povo brasileiro.
Na verdade, o impeachment revelou-se hoje um instituto francamente ilegítimo, perante o princípio fundamental da democracia ou soberania do povo. Ele foi criado na Inglaterra durante a Idade Média, para reforçar o poder dos estamentos privilegiados da nobreza e do clero contra o absolutismo do monarca. Com a instituição pioneira do regime parlamentar na Inglaterra, porém, o instituto tornou-se naquele país obsoleto.
Os Estados Unidos adotaram o impeachment, tanto no plano federal quanto no estadual. Mas sua utilização sempre foi rara. Até hoje, apenas dois Presidentes, Andrew Johnson e Bill Clinton, foram denunciados pela Câmara dos Representantes, mas ambos deixaram de ser condenados pelo Senado. Richard Nixon renunciou ao cargo, antes de ser denunciado.
Na América Latina, entretanto, a partir de 1985, quando os Estados Unidos decidiram não mais apoiar os golpes militares, o instituto passou a ser usado como instrumento preferencial dos grupos oligárquicos para a destituição de chefes de Estado que contrariavam seus interesses. Entre 1985 e 2005, nada menos que 13 (treze) presidentes da República foram destituídos. Em 2012, o Presidente Fernando Lugo, uma espécie de Lula paraguaio, foi destituído pelos oligarcas em 48 horas.
Em 2005, convencido da ilegitimidade do impeachment perante o princípio democrático, ofereci a dois Senadores uma minuta de Proposta de Emenda Constitucional, criando em nossa ordem constitucional o instituto do recall, ou referendo popular revocatório de mandatos eletivos; tanto dos chefes do Poder Executivo, como dos parlamentares. Foi a PEC nº 73, que tramitou no Senado até 2014, quando foi arquivada. Ou seja, a mesma Casa Legislativa que rejeitou a adoção do instituto de democracia direta, pelo qual o povo soberano destitui agentes políticos por ele eleitos, decidiu por si só, sem consulta ao povo, quebrar o mandato popular da Presidente Dilma Rousseff.
É, portanto, da maior evidência que uma das grandes tarefas atuais dos defensores da Democracia contra a dominação oligárquica, que desde sempre imperou neste país, consiste em abolir o instituto do impeachment, introduzindo em seu lugar o referendo popular revocatório de mandatos eletivos.
Distinto auditório,
Sem sombra de dúvida, o maior elogio que se pode fazer à figura maiúscula de Evandro Lins e Silva é afirmar que ele foi, na advocacia e fora dela, em todas as circunstâncias, um paradigma de servidor público, vale dizer, um defensor modelar da dignidade do povo brasileiro.
Que o seu exemplo de vida possa inspirar as novas gerações!
Arcadas, 26 de setembro de 2016