Chauí discute corrupção a sério!
O que combate a corrupção são as instituições políticas - e, não, o Moro! - PHA
publicado
31/10/2017
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Chauí: a liberdade de expressão exige regular os meios de informação (Globo)
O Conversa Afiada reproduz trechos de uma micro-obra-prima: uma exposição da professora Marilena Chauí numa mesa redonda em 27/05/2014, na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, da USP, onde ela é professora:
(...)
uma reforma política republicana e democrática também terá como efeito mudar a forma da discussão sobre a relação entre ética e política, pois nela há a tendência a deslizar para uma atitude paradoxal porque simultaneamente pré e pós moderna.
A concepção pré-moderna da política considera o governante não como representante dos governados, mas de um poder mais alto (Deus, a Razão, a Humanidade, etc), que lhe confere a soberania como poder de decisão pessoal e único. Para ser digno de governar, o dirigente deve possuir um conjunto de virtudes pessoais que atestam seu bom caráter do qual dependem a paz e a ordem. O governante virtuoso é um espelho no qual os governados devem refletir-se, imitando suas virtudes – o espaço público é idêntico ao espaço privado das pessoas de boa conduta e a corrupção é atribuída ao mau caráter ou aos vícios do dirigente. Por isso criticam-se os vícios do tirano e nunca se examina a própria tirania como instituição política.
Por seu turno, a concepção pós-moderna aceita a submissão da política aos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo. Torna-se indústria política e dá ao marketing a tarefa de vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor dessa imagem. Para obter a identificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, artísticas, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação, grau de escolaridade e bons costumes. O político como pessoa a ser vendida e o cidadão como pessoa compradora identifica o espaço público e o espaço do mercado, isto é, dos interesses privados. Em outras palavras, a privatização das figuras do político e do cidadão privatiza o espaço público. Por isso a avaliação ética dos governos não possui critérios próprios a uma ética pública e se torna avaliação de virtudes e vícios pessoais dos governantes; e, como no caso pré-moderno, a corrupção é atribuída ao mau caráter dos dirigentes e não às instituições públicas.
Ao contrário das anteriores, a concepção moderna da política funda-se na distinção entre o público e o privado – portanto, na idéia de república – e volta-se para as práticas da representação e da participação – portanto, para a idéia de democracia.
Um dos exemplos mais contundente da concepção moderna pode ser encontrado na abertura de um texto clássico, o Tratado Político, de Espinosa.
Todos os que até agora escreveram sobre a política, diz ele, nada trouxeram de útil para a prática por causa do moralismo, que os faz idealizar uma natureza humana racional, virtuosa e perfeita e execrar os seres humanos reais, tidos como viciosos e depravados porque movidos por sentimentos ou paixões. Tais escritores, “quando querem parecer sumamente éticos e sábios, prodigalizam louvores a uma natureza humana que não existe em parte alguma e desprezam aquela que realmente existe”.
Ora, prossegue Espinosa, por natureza, e não por vício, os seres humanos são movidos por paixões, impelidos por inveja, orgulho, cobiça, vingança, maledicência, cada qual querendo que os demais vivam como ele próprio. Mas também são impelidos por paixões de generosidade e misericórdia, amizade e piedade, solidariedade e respeito mútuo. Pretender, portanto, que, na política, se desfaçam das paixões e ajam seguindo apenas os preceitos ideais da razão “é comprazer-se na ficção”, confundindo política e utopia.
Por conseguinte, continua Espinosa, um Estado cujo bem-estar, segurança e prosperidade dependam da racionalidade e das virtudes pessoais de alguns dirigentes é “um Estado fadado à ruína”. Para haver paz, segurança, bem-estar e prosperidade “é preciso um ordenamento institucional que obrigue os que administram a república, quer movidos pela razão quer pela paixão, a não agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral.” Pouco importam os motivos interiores ou pessoais dos administradores públicos; o que importa é que as instituições os obriguem a bem administrar e bem governar.
Virtudes e vícios do Estado não são virtudes e vícios privados dos dirigentes e dos cidadãos, mas virtudes públicas, isto é, a boa qualidade das instituições, ou vícios públicos, isto é, deficiências institucionais.
O que é a corrupção? Espinosa a localiza em duas possibilidades. A primeira é a passagem de um regime político à tirania, isto é, à prática da violência contra os cidadãos. O Estado está corrompido quando o governo se efetua pela violência do poder soberano ao impedir a liberdade dos cidadãos, dominando “os espíritos e as línguas”, isto é, ao vigiar os corpos – por meio da força policial e militar - e controlar os pensamentos – por meio da censura das idéias e das palavras. A segunda forma de corrupção nasce da má qualidade das instituições políticas, incapazes de garantir a segurança dos cidadãos ao permitir que alguns particulares se apresentem com o direito para tomar as leis em suas próprias mãos e interpreta-las de maneira a colocá-las a serviço de seus próprios interesses privados. A corrupção, portanto, não deve ser atribuída a vícios privados de governantes e cidadãos, mas às condições do exercício do poder. Assim, a crítica moralizante à corrupção cede lugar à crítica cívica das instituições, isto é, à moralidade pública propriamente dita.
A concepção moderna da política permite passar da fórmula moralista divulgada sem cessar pelos meios de comunicação de massa, qual seja, “a ética na política” (voltada para as qualidades morais pessoais ou privadas dos governantes e dos cidadãos), para a importância da ética da política (referida á qualidade das instituições públicas). Uma reforma política deve, portanto, empenhar-se nessa ética pública, definida pela qualidade de instituições republicanas democráticas.
Que qualidades das instituições públicas garantem a existência e a prática de uma ética pública, tanto partidária quanto governamental? Entre muitas, eu gostaria de mencionar as seguintes:
- instituições de criação, ampliação e consolidação da cidadania, isto é, instituições que propiciem a criação, ampliação e consolidação de direitos econômicos, sociais e culturais. Ou seja, que favoreçam a dignidade e a igualdade, ou a justiça distributiva. Isso significa que tais direitos não podem, à maneira neoliberal, ser convertidos em serviços vendidos e comprados no mercado, pois, neste caso, institui-se a ausência de ética, ou seja, a injustiça;
- instituições de criação, ampliação e consolidação da cidadania política ou dos direitos políticos, isto é, a justiça participativa. Entre várias, eu apontaria:
a) redefinição das formas de representação, de maneira a varrer de uma vez por todas os três obstáculos ao exercício da representação no Brasil, quais sejam, a sub e a super representação, a clientela e a tutela ou as políticas do favor, que ocultam o fato primordial de que o representante recebeu um mandato dos representados cuja vontade e cujos direitos devem ser concretizados por ele;
b) controle social do poder público, tanto pelo estímulo à auto-organização da sociedade quanto pelo estabelecimento de conselhos participativos com representantes eleitos de movimentos e organizações sociais e membros dos poderes executivo e legislativo. Não se trata de instituições para atender demandas e sim para orientar, informar e controlar o poder público. Isso pode assegurar um aspecto essencial da vida republicana e democrática, qual seja, a visibilidade e publicidade das ações governamentais e parlamentares, permitindo que as classes sociais as compreendam, julguem, modifiquem ou reforcem essas ações (o exemplo dos orçamentos participativos é paradigmático para essa modalidade de instituições);
- as instituições para o exercício da justiça distributiva e da justiça participativa só podem concretizar-se com uma cultura política que não dissimule a divisão social das classes e a luta de classes. Isso significa que são instituições abertas às contradições e aos conflitos, considerando-os legítimos e necessários, de tal maneira que as lutas por emancipação não sejam cerceadas por formas repressivas de regulação estatal e sobretudo não sejam recusadas em nome da ideologia do fantasma da “crise”, isto é, da visão autoritária e conservadora, que pretende esconder as divisões sociais e reprimir a luta de classes, transformando suas manifestações em perigo, desordem e caos. Em outras palavras, quando isso ocorre, tem-se ausência de ética pública, pois então reinam não somente a censura e a coerção – impedindo a liberdade política --, mas também a dissimulação da realidade, portanto a mentira pública ou política (aquilo que Marx chamou de ideologia);
- instituições de regulação dos meios de comunicação, pois somente uma cultura política de legitimidade e necessidade dos conflitos pode assegurar uma das mais importantes instituições públicas da democracia: a liberdade de pensamento e de expressão, formadora efetiva de uma opinião pública. Opinião pública não significa sondagem de gostos, preferências, sentimentos e emoções dos cidadãos – isso é a prática do marketing e se chama survey para estratégias de manipulação e controle social e político. Opinião pública é, como disse um filósofo, o direito ao uso público da razão. É pensamento e reflexão feitos em público, referidos a interesses de classe e a direitos dos cidadãos e destinados à discussão e ao debate. Um sentimento, uma preferência, uma emoção não podem ser objeto de discussão. Idéias e opiniões, sim. Isso significa a urgência política de instituições encarregadas da regulação dos meios de informação, tanto aquela veiculada pelo Estado quanto a veiculada por empresas privadas.
uma reforma política republicana e democrática também terá como efeito mudar a forma da discussão sobre a relação entre ética e política, pois nela há a tendência a deslizar para uma atitude paradoxal porque simultaneamente pré e pós moderna.
A concepção pré-moderna da política considera o governante não como representante dos governados, mas de um poder mais alto (Deus, a Razão, a Humanidade, etc), que lhe confere a soberania como poder de decisão pessoal e único. Para ser digno de governar, o dirigente deve possuir um conjunto de virtudes pessoais que atestam seu bom caráter do qual dependem a paz e a ordem. O governante virtuoso é um espelho no qual os governados devem refletir-se, imitando suas virtudes – o espaço público é idêntico ao espaço privado das pessoas de boa conduta e a corrupção é atribuída ao mau caráter ou aos vícios do dirigente. Por isso criticam-se os vícios do tirano e nunca se examina a própria tirania como instituição política.
Por seu turno, a concepção pós-moderna aceita a submissão da política aos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo. Torna-se indústria política e dá ao marketing a tarefa de vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor dessa imagem. Para obter a identificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, artísticas, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação, grau de escolaridade e bons costumes. O político como pessoa a ser vendida e o cidadão como pessoa compradora identifica o espaço público e o espaço do mercado, isto é, dos interesses privados. Em outras palavras, a privatização das figuras do político e do cidadão privatiza o espaço público. Por isso a avaliação ética dos governos não possui critérios próprios a uma ética pública e se torna avaliação de virtudes e vícios pessoais dos governantes; e, como no caso pré-moderno, a corrupção é atribuída ao mau caráter dos dirigentes e não às instituições públicas.
Ao contrário das anteriores, a concepção moderna da política funda-se na distinção entre o público e o privado – portanto, na idéia de república – e volta-se para as práticas da representação e da participação – portanto, para a idéia de democracia.
Um dos exemplos mais contundente da concepção moderna pode ser encontrado na abertura de um texto clássico, o Tratado Político, de Espinosa.
Todos os que até agora escreveram sobre a política, diz ele, nada trouxeram de útil para a prática por causa do moralismo, que os faz idealizar uma natureza humana racional, virtuosa e perfeita e execrar os seres humanos reais, tidos como viciosos e depravados porque movidos por sentimentos ou paixões. Tais escritores, “quando querem parecer sumamente éticos e sábios, prodigalizam louvores a uma natureza humana que não existe em parte alguma e desprezam aquela que realmente existe”.
Ora, prossegue Espinosa, por natureza, e não por vício, os seres humanos são movidos por paixões, impelidos por inveja, orgulho, cobiça, vingança, maledicência, cada qual querendo que os demais vivam como ele próprio. Mas também são impelidos por paixões de generosidade e misericórdia, amizade e piedade, solidariedade e respeito mútuo. Pretender, portanto, que, na política, se desfaçam das paixões e ajam seguindo apenas os preceitos ideais da razão “é comprazer-se na ficção”, confundindo política e utopia.
Por conseguinte, continua Espinosa, um Estado cujo bem-estar, segurança e prosperidade dependam da racionalidade e das virtudes pessoais de alguns dirigentes é “um Estado fadado à ruína”. Para haver paz, segurança, bem-estar e prosperidade “é preciso um ordenamento institucional que obrigue os que administram a república, quer movidos pela razão quer pela paixão, a não agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral.” Pouco importam os motivos interiores ou pessoais dos administradores públicos; o que importa é que as instituições os obriguem a bem administrar e bem governar.
Virtudes e vícios do Estado não são virtudes e vícios privados dos dirigentes e dos cidadãos, mas virtudes públicas, isto é, a boa qualidade das instituições, ou vícios públicos, isto é, deficiências institucionais.
O que é a corrupção? Espinosa a localiza em duas possibilidades. A primeira é a passagem de um regime político à tirania, isto é, à prática da violência contra os cidadãos. O Estado está corrompido quando o governo se efetua pela violência do poder soberano ao impedir a liberdade dos cidadãos, dominando “os espíritos e as línguas”, isto é, ao vigiar os corpos – por meio da força policial e militar - e controlar os pensamentos – por meio da censura das idéias e das palavras. A segunda forma de corrupção nasce da má qualidade das instituições políticas, incapazes de garantir a segurança dos cidadãos ao permitir que alguns particulares se apresentem com o direito para tomar as leis em suas próprias mãos e interpreta-las de maneira a colocá-las a serviço de seus próprios interesses privados. A corrupção, portanto, não deve ser atribuída a vícios privados de governantes e cidadãos, mas às condições do exercício do poder. Assim, a crítica moralizante à corrupção cede lugar à crítica cívica das instituições, isto é, à moralidade pública propriamente dita.
A concepção moderna da política permite passar da fórmula moralista divulgada sem cessar pelos meios de comunicação de massa, qual seja, “a ética na política” (voltada para as qualidades morais pessoais ou privadas dos governantes e dos cidadãos), para a importância da ética da política (referida á qualidade das instituições públicas). Uma reforma política deve, portanto, empenhar-se nessa ética pública, definida pela qualidade de instituições republicanas democráticas.
Que qualidades das instituições públicas garantem a existência e a prática de uma ética pública, tanto partidária quanto governamental? Entre muitas, eu gostaria de mencionar as seguintes:
- instituições de criação, ampliação e consolidação da cidadania, isto é, instituições que propiciem a criação, ampliação e consolidação de direitos econômicos, sociais e culturais. Ou seja, que favoreçam a dignidade e a igualdade, ou a justiça distributiva. Isso significa que tais direitos não podem, à maneira neoliberal, ser convertidos em serviços vendidos e comprados no mercado, pois, neste caso, institui-se a ausência de ética, ou seja, a injustiça;
- instituições de criação, ampliação e consolidação da cidadania política ou dos direitos políticos, isto é, a justiça participativa. Entre várias, eu apontaria:
a) redefinição das formas de representação, de maneira a varrer de uma vez por todas os três obstáculos ao exercício da representação no Brasil, quais sejam, a sub e a super representação, a clientela e a tutela ou as políticas do favor, que ocultam o fato primordial de que o representante recebeu um mandato dos representados cuja vontade e cujos direitos devem ser concretizados por ele;
b) controle social do poder público, tanto pelo estímulo à auto-organização da sociedade quanto pelo estabelecimento de conselhos participativos com representantes eleitos de movimentos e organizações sociais e membros dos poderes executivo e legislativo. Não se trata de instituições para atender demandas e sim para orientar, informar e controlar o poder público. Isso pode assegurar um aspecto essencial da vida republicana e democrática, qual seja, a visibilidade e publicidade das ações governamentais e parlamentares, permitindo que as classes sociais as compreendam, julguem, modifiquem ou reforcem essas ações (o exemplo dos orçamentos participativos é paradigmático para essa modalidade de instituições);
- as instituições para o exercício da justiça distributiva e da justiça participativa só podem concretizar-se com uma cultura política que não dissimule a divisão social das classes e a luta de classes. Isso significa que são instituições abertas às contradições e aos conflitos, considerando-os legítimos e necessários, de tal maneira que as lutas por emancipação não sejam cerceadas por formas repressivas de regulação estatal e sobretudo não sejam recusadas em nome da ideologia do fantasma da “crise”, isto é, da visão autoritária e conservadora, que pretende esconder as divisões sociais e reprimir a luta de classes, transformando suas manifestações em perigo, desordem e caos. Em outras palavras, quando isso ocorre, tem-se ausência de ética pública, pois então reinam não somente a censura e a coerção – impedindo a liberdade política --, mas também a dissimulação da realidade, portanto a mentira pública ou política (aquilo que Marx chamou de ideologia);
- instituições de regulação dos meios de comunicação, pois somente uma cultura política de legitimidade e necessidade dos conflitos pode assegurar uma das mais importantes instituições públicas da democracia: a liberdade de pensamento e de expressão, formadora efetiva de uma opinião pública. Opinião pública não significa sondagem de gostos, preferências, sentimentos e emoções dos cidadãos – isso é a prática do marketing e se chama survey para estratégias de manipulação e controle social e político. Opinião pública é, como disse um filósofo, o direito ao uso público da razão. É pensamento e reflexão feitos em público, referidos a interesses de classe e a direitos dos cidadãos e destinados à discussão e ao debate. Um sentimento, uma preferência, uma emoção não podem ser objeto de discussão. Idéias e opiniões, sim. Isso significa a urgência política de instituições encarregadas da regulação dos meios de informação, tanto aquela veiculada pelo Estado quanto a veiculada por empresas privadas.