Ciro e FHC disputam a mesma costela
O Conversa Afiada publica artigo (sempre sereno) de seu colUnista exclusivo Joaquim Xavier:
É costume dizer que é nas crises que se conhecem as pessoas. Talvez seja um dos poucos aforismos a sobreviver comprovadamente a séculos da história. Em tempos de bonança, tudo é festa. Mas na hora de decisões graves, decisivas, é que personagens grandes ou pequenos mostram sua têmpera.
É compreensível que num país atrasado e subjugado durante praticamente toda a sua existência uma parcela expressiva da população mitigue riscos e dilemas decisivos. Jessé Souza, em sua “Elite do Atraso”, best-seller nacional, descreve esse processo com rara lucidez e complexidade. A grande massa brasileira é mantida deliberadamente nas trevas, na escravidão cultural e social, salvo os raros momentos de flerte com o progresso e a civilização.
Muito, muito pouco. Para quem convive ou conviveu em redações de jornais ou outros veículos de imprensa nas décadas recentes, o ambiente é desolador. Não, não é que os novos jornalistas apenas desconheçam eras geológicas, o Império Romano, as Cruzadas, a República Velha, as Guerras Mundiais, o Estado Novo, o suicídio de Getúlio Vargas, a revolta dos Sargentos e por aí afora. Não. Não sabem quem foram Castello Branco ou Augusto Rademaker, Marcio Souza Mello e Lyra Tavares, triunvirato militar que sucedeu a Costa Silva, igualmente desconhecido pela nova safra. Ou Petrônio Portela, Filinto Muller, Abreu Sodré, Miguel Arraes.
A título de curiosidade: quando morreu o jornalista Carlos Chagas, porta-voz da ditadura no tempo de Costa e Silva, um dos grandes jornais me ligou desesperado para que eu escrevesse alguma coisa. É que a maioria da redação pensava que o Chagas recém-morto havia sido o cientista que identificou uma moléstia batizada com seu nome. E isso nessa época de Googles da vida!. Há testemunhas sobre isso.
Ainda assim, nesse ambiente de ignorância generalizada, sobrevivem alguns premiados por ter tido acesso ao conhecimento universal. Mal ou bem, o Brasil produziu uma academia razoável, quase invariavelmente oriunda da elite espoliadora. Nem pensar que venha dela mudanças estruturais capazes de redesenhar estruturas fundamentais. Isso sempre coube, cabe e caberá ao povo. Espera-se ao menos, no entanto, que pelo menos uma parte daquela, aquinhoada com o acesso ao conhecimento, seja honesta, tenha espinha dorsal –até por coerência com o que aprenderam. Justiça seja feita, há quem faça isso.
É inadmissível ver personagens como Ciro Gomes lavarem as mãos diante da gravíssima opção colocada para o Brasil. Por circunstâncias as quais o espaço não permite explorar, o país está colocado diante de uma escolha de rara visibilidade e clareza: democracia ou fascismo. Letrado e instruído como é, Ciro conhece como o nazi-fascismo floresceu na Europa. As similitudes entre Bolsonaro e Hitler vão além de aspectos físicos. Trata-se do mesmo ideário, de uma trajetória “militar” surpreendentemente semelhante, de uma técnica de discurso praticamente idêntica, de aliados incrivelmente parecidos.
O argumento de que tudo é “culpa do PT” é de uma covardia e personalismo indescritíveis. Lembra a teoria do social-fascismo usada pelos partidos stalinistas para dividir o povo alemão e estender o tapete a Adolf Hitler nos anos 1930. Claro que a luta política supõe a diferenciação entre legendas. Ciro e outros têm todo o direito de apontar erros, que não foram poucos –longe disso-, na condução do país pelos petistas. E a ele nunca foi pedido que abrisse mão delas.
A questão não é essa. Se hoje Ciro e o PDT podem expor claramente suas divergências, é porque ainda existem no país resquícios de democracia. Num eventual governo Bolsonaro, um Temer piorado, nem pensar. Por isso preservar a democracia, sem abrir mão das convicções de cada um, é o objetivo maior e insubstituível. Aqueles “estrategistas” que pensam ser uma derrota da candidatura Haddad um tônico para suas próprias legendas –já que o PT é o maior partido do país--, cabe lembrar que a esmagadora maioria dos brasileiros declara-se sem partido. É a essas pessoas, sobretudo, que Ciro vira as costas. Ao Brasil, não ao PT.
Nem cabe comentar ou perder tempo com gente como FHC –que aliás tb foi se refugiar na Europa, em Paris, sua terra praticamente natal--, Marina Silva, Amoedo, Dorias, Skaffs e gente deste nível. Seu apoio a Bolsonaro, assumido ou envergonhado, já estava “precificado” como se diz no meio desta turma. Tampouco acrescenta algo fazer balanços antecipados: “ah, se isso tivesse sido assim, se fulano ou sicrano fosse menos intransigente.” Isso é coisa de historiador, sempre respeitáveis, mas que adoram viver do “se”. O fato é que o combate é agora, não nas bibliotecas do futuro.
Talvez nunca o Brasil tenha chegado a uma escolha tão decisiva: democracia ou fascismo. Inútil procurar um muro entre eles. Ou se está de um lado, ou do outro. O resto é exatamente isto: resto.