Emiliano quer a anistia de Damous
O Conversa Afiada publica imperdível artigo do jornalista e historiador Emiliano José, que foi deputado pelo PT da Bahia:
O inferno das prisões, o resgate pela política
Emiliano José
“A prisão rouba o amor dos outros
e lhes impede de dá-lo, de ver seus
entes queridos crescendo ou envelhecendo,
ou mesmo de presenciar sua morte; provoca
o medo de ser abandonado ou esquecido
por eles e a culpa por fazê-los sofrer;
afasta da vida normal; priva das atividades
cotidianas: fazer compras, se dirigir ao trabalho,
chegar à janela; provoca a repulsa dos outros;
você sente que está perdendo a vida”. (trecho
de matéria assinada por Lola Huete Machado
no jornal El País, citada por KARAM, Maria
Lucia, parte do artigo “Abolir as prisões:
um passo indispensável para a efetivação
dos direitos fundamentais e o aprofundamento
da democracia”, p. 89, in Tributo a Louk Hulsman,
organizacão de Ester Kovoski e Nilo Batista.
Rio de Janeiro : Revan, 2012.).
O artigo-ensaio recente do deputado Wadih Damous, publicado no Conversa Afiada, é precioso. Mostra o quanto no Brasil de hoje a razão transforma-se em insensatez e a benção em praga. O punitivismo moralista-autoritário, que desconsidera quaisquer vestígios do Estado de Direito, encontra sua última tradução na tentativa de agredir o indulto de natal, iniciativa do Executivo, e só dele, e desconsiderado pelo STF, que matou de uma penada a consagrada, e outra vez ignorada, separação dos poderes. Compensa ler e reler “A resposta à empáfia judicial dever ser uma lei de anistia ampla, geral e irrestrita”.
Só lendo e relendo para compreender esse espírito do tempo, onde a punição tudo resolve, onde a falta dela, como diz o parlamentar, é sinal de decadência, destruição e perdição – muitos dos integrantes do sistema de justiça punitivista são evangélicos inquisitoriais, saudosos dos tempos em que a fogueira terminava com o pecado, corpos queimando em cerimônias sádicas a alegrar a multidão e, à falta do fogo nos dias atuais, que os maus apodreçam nas prisões fétidas do Brasil, sonho de tantos jovens promotores e juízes, que disso não se cansam de proclamar. Como se tivéssemos poucos presos no Brasil, já o quarto do mundo em encarceramento, atrás apenas dos EUA, da China e da Rússia, já tendo ultrapassado a casa dos 700 mil prisioneiros.
Será que algum dos novos inquisidores tem o cuidado de olhar para dentro dos presídios brasileiros? Será que pensam nos corpos sem cabeça e nas cabeças sem corpo que horrorizaram as pessoas mais sensíveis quando das notícias das rebeliões desse ano de 2017? Será que se perguntam sobre as razões de tais explosões? Será que pensam no fato de que a esmagadora maioria desses presos trancafiados em situação medieval não foram julgados por falhas do próprio sistema de justiça, num arbítrio absolutamente injustificável? Creio que não, salvo notáveis exceções. Sempre pedem mais e mais punição, e se comprazem em reclamar a construção de mais e mais presídios, a pretender a aproximação teórico-prática com a política prisional implantada nos EUA.
Talvez devessem assistir, e não acredito servisse para alguma coisa, mas faço a recomendação, talvez devessem assistir a 13ª Emenda, notável documentário de Ava DuVernay, sobre a máquina prisional americana, um monstruoso sistema, totalmente assumido pela iniciativa privada, destinado a tirar de circulação negros considerados indesejáveis para a ordem capitalista local. Estamos caminhando a passos largos para copiá-lo, lamentavelmente, inclusive quanto à privatização, quanto a torná-lo mais um mecanismo de acumulação, onde o número de prisioneiros representa elemento de dinamização do negócio, corpos entregues à sanha desenfreada em busca de lucros.
Ouso sugerir ainda a leitura de dois livros de Giorgio Aganbem: O que resta de Auschwitz e Estado de Exceção. Ou voltar um pouco no tempo, e passar os olhos em Vigiar e Punir, de Michel Foucault. Ou em Tributo a Louk Hulsman, organizado por Nilo Batista e Ester Kosovski. Inúteis recomendações, porque muito provavelmente integrantes do sistema de justiça estão mais voltados ao Velho Testamento, aqueles livros voltados a um deus punitivo, excluindo-se aquelas partes cheias de poesia e sexualidade que ele também oferece. Os livros que sugeri evidenciam o quanto o Estado capitalista se vale do Estado de Exceção – é só olhar para os dias de hoje no Brasil –, o quanto ainda resta de Auschwitz entre nós, a lembrar o quanto a Inquisição nos visita diariamente, e o quanto estamos distantes da ideia libertária, fundamental do abolicionismo penal de um Hulsman.
Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Sempre volto a essa frase, de Romain Rolland, tão utilizada por Gramsci, para resumir minha atitude face a algumas conjunturas, como a que vivemos. Não é fácil o quadro em que vivemos. Um golpe jogou qualquer ideia de democracia pelos ares. E até mesmo uma medida como essa do indulto, que no campo específico de diminuir o número de presos, é barrada pelo sistema de justiça de modo a consagrar um quadro de repressão, de aumento do encarceramento, de aprofundamento da visão inquisitorial.
Não penso possamos discutir a situação prisional do Brasil desvinculada da situação política. Agora, o otimismo da vontade. Só é possível enfrentá-la sob um Estado democrático, onde seja possível modificar nossas instituições profundamente, garantir a soberania do voto, a hegemonia da política, terminar com a pretensão manifesta do sistema de justiça de governar o país, não obstante a ausência de qualquer legitimação pelo voto.
Para enfrentar a monstruosidade de prisões lotadas, para acabar com essa mentalidade punitiva, acabar com a seletividade na aplicação da lei, com a mortandade de nossa juventude negra e pobre, seria necessário mudar inteiramente a política em relação às drogas, descriminalizando-as, tal como o tem feito tantos outros países. Ampliar muito o conceito de penas alternativas, ou ao menos aplicá-lo. Com a atual política repressiva, estamos dando combustível ao crime organizado, fazendo crescer o número de presos, e matando sem dó nem piedade nossos jovens em todo o Brasil.
Assim, a proposta de Damous, tão generosa e apropriada, só se torna viável, com a derrota do golpe em andamento. E ele, com o incessante combate que vem fazendo ao governo golpista, sabe disso pratica isso. É pela política, pela hegemonia da política, descriminalizando-a, que vamos mudar esse País. Derrotar o golpe é nossa principal palavra de ordem. Derrotando-o, garantindo a eleição de Lula, nós vamos começar uma profunda mudança institucional, mexendo com o arcabouço atual, iniciando uma luta político-cultural que não considere a prisão, solução. Que pensemos em resolver o conflito pelo diálogo, que dissemine a pena alternativa, que não encha mais os presídios, que caminhe para desativá-los e não construir novos.