Lula é candidato e não é
Lacombe Camargo: o direito extremamente injusto não é direito
publicado
31/08/2018
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Por Margarida Lacombe Camargo, professora de Direito da UFRJ e coordenadora do Observatório da Justiça Brasileira:
Atipicidade da campanha eleitoral de 2018
Experimentamos um momento pré-eleitoral atípico, ou até mesmo esquizofrênico, que nos impede de discernir o que é real do que não é real. As pesquisas de opinião divergem, fortemente, nos resultados com Lula e sem Lula como candidato. O noticiário, normalmente, é iniciado com a ressalva de que Lula é candidato, mas não pode participar da campanha porque está preso. É candidato e não é candidato ao mesmo tempo; o que já nos mostra um paradoxo. Assim, quais números devemos considerar como verdadeiros durante a campanha? O que devemos tomar como premissa para avaliar as pesquisas de opinião? Qual é a opinião válida do eleitorado brasileiro? Quais os números válidos? Nesse ponto, verdade e validade se confundem, e o Direito talvez possa oferecer uma resposta, afinal, o que delimita esses quadros é uma sentença judicial. Como professora de Teoria do Direito, arrisco-me, então, a equacionar o problema da seguinte forma.
Válida é a norma ditada pela autoridade competente. E as sentenças entram nesse rol, como nos mostra Hans Kelsen, um dos maiores positivistas do século XX. A sentença judicial é norma individual porque estabelece direito e obrigação para as partes. De outro lado, o Direito também determina quem está autorizado a julgar. Juízes e juízas legalmente empossados são legitimados a dizer o Direito, e desde que em conformidade com regras processuais. Dessa maneira, o reconhecimento da autoridade legal e da forma prevista em lei são suficientes para considerarmos como fato objetivo e verdadeiro as sentenças que proferem e tomarmos como válidos os efeitos delas decorrentes.
Contudo, existe um limite para o Direito. As normas não podem tudo. Na linha teórica de Gustav Radbruch e Robert Alexy, o direito extremamente injusto não é direito. Trata-se de uma questão que nos desafia tanto em termos epistemológicos, de verificar o que é extremamente injusto, como em termos da segurança jurídica, um dos pilares do Estado de Direito. Deixamos ao critério de cada um dizer o que é extremamente injusto? Não. Há um senso razoável para fazê-lo. Razoabilidade no sentido da capacidade de oferecer e fazer prevalecer argumentos fortes em um discurso com igualdade e liberdade de participação, principalmente quando os argumentos se sustentam em fatos provados; no caso, em números e dados.
É verdade que existe uma sentença do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que condenou Lula? É verdade. É fato que ele está preso e não pode estar presente nos debates televisivos? Sim. Contudo, as pesquisas, com Lula, também mostram como verdadeira a vontade do eleitorado brasileiro expressada em pesquisas de opinião. É verdade que sua candidatura mostra a vontade da maioria nas intenções de voto. A maioria do povo brasileiro quer Lula, ao que tudo indica. Assim, é verdade que a prisão de Lula afeta a expressão da vontade da maioria da população brasileira, nos permitindo concluir que a prisão de Lula é um golpe à democracia.
Uma norma, a sentença de Lula, mostra-se extremamente injusta na medida em que atinge aquilo que as sociedades democráticas têm de mais caro, que é a liberdade de escolher seus governantes. Logo, considerado o seu conteúdo, é uma sentença substancialmente inválida. Ainda, sob o ponto de vista formal, do processo, não faltam especialistas da área penal que apontem suas falhas. Pelo que acompanho, é a opinião da maioria. Desde a falta de competência do juiz de primeira instância para conhecer a causa e apreciar a matéria, até a ausência de provas para a condenação em segunda instância, fora as estranhezas concernentes à agilidade e rapidez com que foi processado o julgamento, tendo em vista o calendário eleitoral.
Por isso, parece-me natural que correntes comprometidas com a democracia se neguem a tomar como válidas ou verdadeiras as premissas que embasam pesquisas de opinião em que Lula não conste como candidato. Mas, se isso serve, e em que medida, às estratégias de campanha da esquerda ou da direita, bem como aos discursos encampados pelos meios de comunicação, é algo sobre o que não cabe aos juristas dizerem, pelo menos sob o ponto de vista jurídico.